Cidade de Deus, ou abrigo de miseráveis?

Poucos podem imaginar, mas uma canção que hoje poucos se recordam, abordou muito bem o cenário exibido por um dos filmes de maior sucesso e relevância no país

Antes do lançamento do filme “Cidade de Deus” a população – com exceção daqueles que já residiam no Rio de Janeiro - conhecia o local apenas pelo trabalho jornalístico da imprensa em geral, que exibia a cada edição, fortes cenas de violência e terror. Já uma outra pequena parte, foi apresentada a comunidade através de um outro meio, que por sinal possui características bastante incomuns a imprensa. Embora não lhe possa ser atribuído o título de vertente informativa, a música pode ser um veículo mais poderoso que rádio e tevê. Isso porque se aloja na mente do ouvinte e assim leva as pessoas a realizarem um automático processo de reflexão.

E foi dentro dessa perspectiva ideológica que foram criados os versos da canção “Rap da Cidade de Deus”, composta pelos funks MC Cidinho e MC Doca. A música faz parte do repertório do álbum “Rap Brasil 2”, lançado em todo país no ano de 1995. Nesse trabalho, a dupla de letristas além de abordar a violência sofrida pelos habitantes do local, aponta um pouco das maravilhas a qual poderia se conviver e encontrar na comunidade. E quem diria que sete anos mais tarde, os problemas mencionados pela música ganhariam forma, sendo ainda aprofundados em uma das obras de maior relevância do cinema nacional, no retrato dos problemas sociais vividos nas favelas do país.

Baseado no romance homônimo de Fernando Lins, “Cidade de Deus", lançado em 2002, demorou cerca de quatro anos e meio para ser finalizado. Isso desde a produção do eficiente roteiro que elaborado por Bráulio Montavini, facilmente prende atenção do expectador, até a seleção de atores realizada pela co-diretora Kátia Lund e enfim as filmagens, quando entrou em cena a figura do diretor Fernando Lins.

A verdadeira Cidade de Deus nasceu de uma ação do Governo do Estado do Rio de Janeiro na década de 60, para transferir os moradores da favela da Praia do Pinto no Leblon - bairro nobre da cidade. O projeto visava transferir apenas esses moradores da comunidade, até que uma forte chuva deixou várias famílias desabrigadas, levando a comunidade então a proteger também esses flagelados.

No filme de Fernando Lins, a trama decorre sob o ponto de vista de Buscapé, menino pobre da favela que acalentava o sonho de ser fotógrafo. Paralelo a isso é narrada a história de Nadinho, que no período de infância desejava vir a ser o homem mais poderoso do pedaço. Passados alguns anos, Nadinho tornou-se Zé Pequeno, conseguiu não só ser o homem mais poderoso, como também o bandido mais temido em toda a comunidade, tomando para si vários pontos de venda de drogas. Enquanto Buscapé usava suas economias para poder comprar uma máquina, mantendo ainda vivo o sonho de ser um grande fotógrafo.

Com uma excelente linguagem narrativa, a fotografia do filme possui uma curiosa montagem, tendo como destaque à cronologia que em determinadas passagens decorre de forma alternada. O resultado foi uma produção fiel aos acontecimentos, com um leve toque de ficção, em conjunto a intensos conflitos psicológicos e repletos de depoimentos. Sendo que essas declarações são apresentadas durante a seqüência do filme, sejam de pessoas sucintas ou dos verdadeiros protagonistas da violência. Não que a obra caísse em contradição, mas a autenticidade prima por diferentes pontos de vista, lados opostos se for possível.

Diante de tamanha genialidade, cabe apenas que passados alguns anos, não se deixe à produção cair na mediocridade. A causa deve ser abordada, seja com as imagens, o som de fundo e os roteiros da sétima arte. Ou as melodias como a de MC Cidinho e MC Doca, em conjunto a versos - ricos ou pobres pouco importa - mas que retratem a situação vivida no país. Sem esquecer também do poder narrativo de grandes romancistas, capazes de elaborar uma trama, atribuindo a mesma, problemas sociais sofridos pela população. O início é assim, as mudanças tendem a surgir algum dia, afinal o processo decorre em longo prazo. Só não pode parar e se satisfazer com à situação. Já que por mais que o discurso pareça utópico, ainda existe uma segunda opção, como assistir “Cidade de Deus” daqui a 30 anos, ver como a produção permanece atualizada, rir de todos os problemas, aceitá-los pacificamente, pois esse de fato é o país do descaso, possuidor de verdades que assombram, dentro de toda uma estupidez humana que tende destruir gradativamente a sociedade.