9 de março de 2011

A lógica ilógica de uma cegueira

Nunca fui um dos maiores adeptos ao trabalho de José Saramago, confesso! No entanto, nem se fosse cego poderia negar que, o autor falecido no ano passado, tem elementos de sobra para – no mínimo – merecer um post no Cemitério. Como parte de uma realização pessoal, resolvi que deveria conhecer mais de perto o trabalho desse que, para muitos, é um dos escritores mais geniais da literatura. Minha empreitada começou com uma de suas obras mais expressivas, portanto não deixem de ler a crítica.

É bem difícil presumir essa experimentação artística: “Ensaio sobre a Cegueira.” Basicamente, pode ser conjeturado como um grito cego que emerge de uma humanidade completamente arrasada, alojada em um caos profundo, precisamente compondo um labirinto de dementes... A imperfeição contraditória de um perfeito cenário caótico que só poderia ser retratado - adquirindo vida própria - através do texto de um dos maiores escritores dos últimos tempos, ninguém menos que José Saramago.

Tudo começa quando, estranhamente e numa situação verdadeiramente atípica, um homem fica cego. Era até um dia normal na cidade. Transeuntes iam e vinham de todas as direções. Igualmente os carros parados numa esquina a espera do sinal mudar. Quando finalmente, após minutos que pareciam compor uma árdua espera, a luz verde acende-se, mas um dos carros, ainda inexplicavelmente, não se move. Em meio a muito barulho de buzinas e gente enfurecida que batia nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, era até possível ler as palavras que saltavam de seus lábios, justamente apenas duas únicas palavras: "Estou cego".

Essa era a deixa inicial para um livro que faz o leitor enxergar além de sua própria vontade, e até bem mais que isso, faz temer a própria humanidade frente a uma situação adversa. A verdade é que o específico narrativo não dá uma trégua, já começa duro e, sobretudo, assustador. Esse é o estilo predominante da escrita de Saramago. Até a estrutura textual é recheada de particularidades, com poucos pontos, muitas vírgulas e discurso corrente, o plano de fundo perfeito para suscitar um cenário de acontecimentos de aparência inverossímil, passando pela mente do leitor com uma velocidade incrível.

A partir de uma súbita e inexplicável epidemia de cegueira, o autor gradativamente guia um a um de seus leitores por um tênue caminho, uma dimensão paralelamente ambígua, guiada para a desorganização, desconstrução dos valores mais básicos da sociedade, transformando seus personagens se não em animais egoístas, em verdadeiros déspotas, na sua luta desenfreada pela sobrevivência. Vários personagens vão sendo sucumbidos pelo mal sem que o leitor tenha uma mínima pausa para dar uma rápida respirada. E quando finalmente se dá conta, uma constatação minimamente intrigante, é formado um relato tão aberto à imaginação do leitor, é impossível não temer uma verdadeira epidemia, imaginar como agiria não somente as autoridades, mas o homem em uma situação dessa natureza, e a certeza de como realmente o medo faria vir à tona os instintos mais contraditórios e ocultados do ser.

Apesar disso, a princípio, numa perspectiva simplória e singularizada, é possível criticar a verossimilhança da obra. O hiper-realismo focado na probabilidade absurda de uma cegueira invadir a sociedade, uma doença se proliferar dessa forma, numa visão mais cética isso pode ser questionado. No entanto, a enfermidade é o plano de fundo metafórico para a obra de Saramago dialogar com a crítica sobre os valores sociais, mostrando-os frágeis, pois onde ninguém vê, teoricamente nada aparece, elucidando que os valores, sejam morais ou materiais, são nada mais atribuições criadas pelo homem. Neste contexto, a obra mostra desde aventuras sexuais, o pudor, que já não existe porque não é visto, até a imundície que se instala por toda a cidade.

Estrutura

A história é narrada de modo linear, embora exista uma desconstrução dessa mesma linearidade no quesito temporal, sobretudo, durante suas idas e vindas nas memórias das personagens. A obra é um experimento de características únicas, a mesquinhez presente evoca a reflexão sobre os valores que cada um tem da vida, da moral, dos costumes e até mesmo do que nos é caro: onde está a mãe do menino estrábico? Cegou, morreu? A rapariga de óculos que, em princípio, parece não ter valores, mostra-se filha amorosa, amiga e uma mulher capaz de amar, não pela beleza física, mas pela ternura que as situações a levam.

Um artifício interessante são particularidades que rodeiam as personagens, não caracterizadas por seus nomes, mas pelas próprias particularidades. Citando protagonistas e antagonistas como os ocupantes da camarata onde estavam o médico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, a rapariga de óculos e o velho com a venda num dos olhos.

A questão da liberdade poética e criativa pode servir para atestar que a obra é difícil de ser concebida por uma soma de motivos, a começar pelo seu contexto filosófico, e seguindo pelo estilo de José Saramago: as falas entre vírgulas forçam o leitor a um verdadeiro mergulho em suas ideias, pois é impossível parar em meio às opiniões do autor.

Romance Moderno

A característica do moderno está em representar alguma ruptura, fuga, quebra, distanciamento com a época anterior e as trivialidades. É um experimento marcado pela subjetividade, a desconstrução, que é um dos parâmetros indispensável para a sociedade moderna, focado nesse desejo voraz e insaciável que é dizimar o que pode ser definido como a máscara da razão, entrando em cena a vontade fisiológica, atenuada pelo poder e competição, a real desvinculação de valores sistematizados, é um anúncio que a obra poderá ser ideada como pós-moderna.

É relevante elucidar que o texto possui, pelo menos aparentemente, certo compromisso com a realidade, embora (eu) não seja a pessoa (médico) mais qualificada para analisar esse grau de veracidade. Existe uma preocupação de se fazer uma explanação contextualizada acerca do mal que assola, traçar os sintomas, e, portanto, não é absurdo dizer que isso denuncia que parece ter havido um estudo, por parte do autor, porque cegueira não se desenvolve de uma hora pra outra, ele faz o parâmetro que nessa enfermidade se enxerga tudo claro, ao contrário da doença conhecida que é tudo escuro. Sobre A Cegueira Branca, como é determinada no romance, nesse aspecto, sem aprofundar textualmente, porque de fato não é importante, parece até existir controvérsias. Mas importante mesmo é analisar criticamente o recurso que se sucede em torno do mal branco, focado na ideação literária, que nada mais é que o resultado do produto geral do trabalho, da cultura. A cultura de um povo se realiza, em diversos sentidos, nas ciências e nas artes. É um conjunto de fatos e hábitos socialmente herdados, e isso determina a vida dos indivíduos.

O texto é moldado em ideais expressionistas, uma vertente que costuma ser entendida como a deformação da realidade para expressar mais subjetivamente a natureza e o ser humano, dando primazia à expressão dos sentimentos mais que à descrição objetiva da realidade. Entendido desta forma, o expressionismo é extrapolável a qualquer época e espaço geográfico.

Proposta Narrativa

No texto predomina a narração onisciente, embora não exista uma única perspectiva narrativa, visto que o narrador acaba dando voz e dialogando com a ideia de alguns personagens. O narrador de Saramago parece querer incomodar a consciência daqueles que percorrem, pela leitura, suas histórias. Assim, é-lhe peculiar fazer uso da invasão do pensamento das personagens, a fim de revelar suas verdades mais recônditas, também de manusear o tempo ficcional em conjunto com o histórico, causando um vai-e-vem revelador de uma pluralidade de pontos de vista e de julgamentos. O narrador constrói imagens significativas para o leitor, como esta, em que explica o fato de que se o ladrão tivesse recebido oportunidade de ter tomado outra via, não teria praticado o roubo, que lhe ficaria na consciência.

O narrador é o canal que liga o leitor a liberdade criativa de Saramago, pois é através da ação que exerce, o papel de costura as vozes dos personagens para dali conduzir o leitor a uma conclusão, para auxiliá-lo nessa “terra de cegos”, mas de modo que se deixa perceber como o construtor de algo, como alguém que ainda tem algo por fazer.

A cena que diria que mais choca ocorre durante o duelo dentro do manicômio, quando o local acaba sendo tomado pelas chamas. A elegia característica do local, somada a luta pela sobrevivência. Do outro lado o instinto dominante, aliado ao desejo de sobressair frente aos demais. O resultado disso é que nenhum deles, o bem e o mal, podiam imaginar que o mal maior em forma de cegueira, havia rompido os muros do manicômio, invadira toda a cidade, talvez o mundo, enquanto para eles a degradação humana era iminente ao cenário que habitavam.

Outro aspecto interessante, a mulher do médico, ironicamente, recebeu a dádiva de conservar o dom da visão. Ironicamente, porque seu trunfo acabou se tornando seu martírio, sua maldição, aquilo que a diferenciava dos demais, que além de lhe garantir como testemunha ocular do sofrimento coletivo, fazia dela diferente, a pessoa realmente deficiente dentre as demais.

Mensagem final: o leitor pode ou não estar encantado com a literatura de Saramago, pois certo mesmo é que está indubitavelmente assustado com a dúvida que o autor insere indiretamente: É assim que os homens verdadeiramente são? É preciso cegar-se todos para que enxerguemos a essência de cada um?

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