22 de agosto de 2019

Lua de fel

Parte de uma trama sórdida traçada pelo destino, os recém-unidos em matrimônio teriam a primeira noite, juntos, sob a anuência do plenilúnio. O deleite pela nudez do momento contrastava com a pureza simbólica do vestido branco, esgarçado pela volúpia, cedendo lugar a qualquer vestígio romanesco, afinal as mostras de sentimentalismo foram exaustivamente encenadas nos longilíneos cinco anos divididos entre o flerte, compromisso, noivado e a enfim chegada do casório.

Queriam mais agora se render ao pecado carnal, teriam outros dias, a sós, para declamar poemas, tecer planos para o futuro, lamentar não terem durante aquela meia década se rendido antes à lascividade. Desnudos, apenas o semblante pervertido do recém-marido, entorpecido diante dos seios avantajados da ruiva, era o bastante para despertar sua excitação. Estacado sobre a cama, também fitava outros tributos do corpo de sua Senhora, seduzido até a desbravar o enigmático olhar o qual não havia sido ainda apresentado. Cada segundo mais enfronhados no prazer, as investidas lúbricas eram testemunhadas apenas pela lua gorda a aclarar o aposento. Pela janela, todo contorno circulante da órbita era emoldurado, abrindo-se na cadência veloz de uma estrela para adornar o ambiente aconchegante. Posicionando-se sobre o amante, a Mulher recorria a um movimento compassado, vertiginoso, levando-o a esgar de prazer. Pura exuberância como os cabelos vermelhos, esvoaçantes, roçando contra seu abdômen, proporcionando uma sensação inenarrável.
- Você me ama, Marido?

- Diga logo se você me ama, Marido – insistiu, após segundos silentes. Acanhado pela inoportuna indagação, pretendia evitar sobressaltos e lutava para não enrubescer de vergonha.

- Eu te amo sim. Te desejo mais do que tudo – respondeu sem muita convicção, torcendo para não se prolongar a sessão de ultrarromantismo.

Lá fora, a força das lufadas desvairadas impulsionavam as poucas nuvens no céu escuro, enquanto na alcova, os passionais indefectíveis foram acometidos pelo incitador calafrio. A luz prata, provinda da noite enluarada, penetrou mais intensamente no cômodo, passando a luzir os cernes descamisados. O uivo estrépito emergiu, rompendo abruptamente o epicentro do prazer. Pávido, o marido observava a metamorfose perturbante, com os belos cabelos rubros desatando do couro, ao mesmo tempo as mãos e dedos se alargaram, ficando cobertos por felpas em tom acinzentado.

O rosto, antes dotado de belas feições, deu lugar a um focinho franzido, repleto de pelos desgrenhados. Os olhos da besta fez o recém-Marido se ver diante do emissário da morte, eram amarelos como fogo, cintilantes, tão penetrantes. A criatura aluada ostentava afiadas presas, amedrontadoras em proporção parecida com as garras, saltando pelas opulentas patas.

O rugido da besta foi ouvido por quase toda a cidade. Com um movimento célere, a fera cravou os afiados dentes contra o pescoço daquele que há instantes, fora seu marido. A morte instantânea foi indolor, mas a felpuda abelha-rainha não estava saciada, fincando seguidamente as garras sobre o peito da vítima, rasgando ossos como papel, arrancando o coração ansioso, repleto de paixão, abocanhado em míseros segundos. O sangue jorra por toda parte e urrando às trevas, a sanguinolenta viúva lobisomem se delicia como mel avermelhado, escorrendo pelas presas aguçadas, enxovalhando os pelos do focinho achatado.

Esviscerado, o semblante congelado do marido denuncia um derradeiro e inusitado pensamento: além de proteções, vinhos e estimulantes, podia não ter se esquecido de trazer uma bala de prata para essa lua de mel, em plena noite de lua cheia ... Amarga como uma lua de fel .

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17 de junho de 2019

A Aparição

Uma casual conversa de bar, passando por uma incidental visita a uma cena de crime, até ser surpreendido por uma aparição fantasmagórica. Às vezes, quando a gente está procurando uma coisa, na base do acaso, acaba sendo encontrado por outra, afinal é impossível delinear os preceitos regidos pelo destino.
Aquela se anunciava como uma tarde diferente. Meu pai, padrinho e eu estávamos numa mesa de bar, jogando conversa fora enquanto transcorria o tempo. Entre goles de cerveja gelada, os dois conversavam sobre economia, evolução e queda abissal do mercado financeiro, um pouco sobre futebol, enquanto eu tentava sair incólume daqueles assuntos pouco inspiradores, preferia vislumbrar o suculento pastel de queijo, devorado com volúpia enquanto sanava a sede deglutindo generosos sorvos de coca-cola.
O pastel oleoso proporcionava uma gula verdadeiramente lasciva, que acabou sendo rompida pelo garçom, ah aquele maldito garçom, surpreendeu a todos com uma notícia nada jubilosa.
- Acabaram de assassinar a Jéssica! E você não vai acreditar seu Carlos, o pai dela, o professor Manuel, é acusado de ter praticado o crime! Tudo indica ser por causa de uma gravidez acidental. Vocês acreditam? – disparou o rapaz, arfante! Após resfolegar por alguns segundos, mencionou ainda a prisão do suposto autor daquele crime bárbaro.
- Quem é Jéssica afinal? – indaguei. Aquela altura o pastel descia de forma nauseante, azando inconveniente vertigem.
- Eu conheço toda família! Manuel foi meu cliente, inclusive. Como pode fazer uma coisa dessas? – lamentava o padrinho, desolado, mencionando o desejo de prestar condolências à família, diante de um momento indubitavelmente tão adverso e violento. Sugerindo que o acompanhássemos naquele penoso propósito, assisti meu pai aceitar o convite de prontidão. Para não me caracterizarem como uma figura dotada de preceitos egóicos, não hesitei em seguir com eles.
No curto percurso até ao apartamento onde moravam, pensei na garota, que teve a vida dizimada por uma mostra de violência tão desmedida, impulsionada por razão tão banal. A família até poderia reunir forças para seguir em frente, dar a volta por cima, mas o alicerce familiar permaneceria eivado.
Na portaria do condomínio onde residiam, foi autorizada nossa entrada. Ainda no hall do luxuoso edifício, meu padrinho mostrou a foto da garota morta, uma jovem com aparentemente menos de 18 anos, seu semblante revelava uma pureza singular, agora maculada pela ira descomunal de um pai tresloucado. Pensava que com o mundo habitado por figuras tão nefandas, o demônio é representado em sua essência natural!
Na porta de entrada para o apartamento, logo após tocar a campainha, lamentava ter que visualizar o local onde repousava a jovem, aquela trama sórdida e com traços obscenos. Uma mulher, possivelmente a secretária, atendeu e permitiu nossa entrada naquele apartamento com energia tão onusta, capaz de despertar inquietude. Mal entrara e estranhamente me sentia confinado naquela caixa de tijolos, areia, cimento, argamassa....
- A dona Vera pode nos receber? - Perguntou meu padrinho, me levando a concluir que a pessoa citada seria esposa do tal assassino e mãe da menina que momentos atrás teve a vida ordinariamente ceifada. – Não sei se chegamos em boa hora. Como amigos, viemos para prestar comiseração nesse...
- A dona Vera saiu para tratar do velório e enterro da filha – interrompeu a secretária. Demonstrando estar muito chocada, lamentou o triste fim imputado à garota por um pai impelido de puro ódio e vaidade! – Tantas meninas engravidam nessa idade. Ainda posso ouvir os gritos dela, enquanto o miserável cravava as facadas contra seu corpo – expôs com os olhos marejados. Antecipando as respostas para outras perguntas, confirmou que Manuel já havia sido preso e o corpo da garota recolhido há poucos minutos.
Embora nos tratasse de maneira amistosa, era perceptível que a secretária estava acometida pela tragédia. Pensei em preencher algumas lacunas, dúvidas a saltar sobre meus olhos, como saber se o tal Manuel demonstrava antes comportamento violento ou se havia alguma rusga entre família e o pai da criança. Mas não tive coragem de ser tão invasivo e petulante.
- Eu vou passar um café para vocês. Se quiserem ver o local do assassinato, foi no segundo quarto à direita – comentou. Antes de seguir para a cozinha, frisou que os investigadores orientaram a entrada de uma pessoa por vez, pedindo ainda para o cômodo ser mantido climatizado, visando a preservação da cena do crime!
- Quem, em sã consciência, teria o mau gosto de visitar o aposento, pano de fundo para um assassinato tão brutal? – refletia assistindo meu padrinho se mover pelo corredor. Torci para ser um alarme falso, naturalmente estava procurando o banheiro, até seus passos lhe levarem precisamente ao segundo corredor à direita. Com a saída do padrinho, foi a vez de meu pai entrar. Como sempre acreditei que é sempre melhor nos arrependemos pelo que fizemos, assim que deixou os aposentos resolvi bisbilhotar também.
A primeira impressão, ao ocupar o dormitório, foi de ter sido alvejado por um choque térmico, afinal a temperatura estava bem álgida em relação a sala de estar. O aposento da jovem era bastante amplo e, como em muitos outros quartos de garotas, tinha a decoração baseada nas cores branco e rosa. Havia ursos de pelúcia sobre vários nichos montados na parede, prateleiras adornadas por livros, além de um televisor tamanho médio pendurado na parede.
A direita ficava o extenso guarda roupa, praticamente caberia uma boutique ali dentro. Dividido em duas partes, a cama ficava entre elas, havendo um criado-mudo de pequenas dimensões no canto esquerdo. De frente a cama, uma escrivaninha, com algumas gotas de sangue que formavam um caminho até ao leito, encharcado pelo líquido.
A despeito de não despontar como um especialista em assassinatos era possível presumir: Jéssica estava sentada na cadeira, de frente ao computador quando foi surpreendida pelo pai. Empunhando uma faca, desferiu os primeiros golpes contra a filha, que, ferida, tentou se desvencilhar do agressor. Havia um ponto no qual era mais concentrada a abundância de sangue, possivelmente ali foram desferidos os golpes mais profundos. Sem forças, a garota tombou sobre a cama, onde permaneceu sofrendo a investida até sucumbir completamente.
Há alguns metros da cama, uma das portas do roupeiro estava aberta e lá havia um espelho. Estranhamente o objeto refletia uma nevoaça, somente visualizada através do reflexo. Observando atentamente, da neblina vi emergir uma garota, coberta por sangue que escorria pelos longos cabelos. Ardilosa nas sombras, ostentava olhos cerrados, negrumes, carregando nas mãos um amontoado de carne humana, semelhante a um feto, completamente desfigurado, exalando um choro pavoroso, mais semelhante a um sussurro agudo.
- Salve o meu bebê, salve o meu bebê, salve o meu bebê, salve o meu... – vociferava cada vez mais alto. A misteriosa e desvairada aparição se aproximava, lentamente. O choro da criança ficava mais intenso, enquanto permanecia se aproximando, bem lentamente... Os passos seguintes deixaram-na tão próximo a ponto de, na tentativa de correr com todas as forças, acabei foi despertando do sono, deveras assustado, como se escapasse da masmorra do inferno.
No mundo real, narrei a trama para amigos. Alguns argumentaram que meu subconsciente armou uma arapuca previsível, nítida pela forma como o enredo foi costurado. Já que tudo não passava de um sonho, lamentei não ter sido capaz de salvar a Jéssica dentro de meu próprio estranho mundo. Por que diabos, o inconsciente preteriu a oportunidade de me tornar herói, apenas para idear uma personagem morta, vivendo tão somente para me assombrar!

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5 de junho de 2019

De olhos bem fechados

A sensação, de estar diante do proibido, despertava mais deleite do que propriamente o ato prestes a ser praticado. Não era sempre que Armando tinha Laura descamisada, sobre seus braços fortes, com o quarto onde os pais dela dormem servindo como alcova para o pecado a se suceder. Se lá fora, a noite era negrume, com uma lua encafurnada pelas nuvens em meio ao céu “desestrelado”, dentro os corpos eram como carvão crepitante, com as peças de roupas se esgarçando diante da tão ávida lascividade.
Os dois se amavam com volúpia, degustando a cama que não lhes pertenciam, por entre as cobertas que já cobriram os corpos de outro casal, talvez até durante núpcias que nove meses depois permitiriam a chegada de Laura ao mundo, a mesma Laura que experimentava ali a excitação descabida, no palco de sua fecundação. O soído da cama, acentuado pela intensidade do movimento corporal, deixava Laura em ainda mais êxtase, enquanto Armando se via cada segundo mais atraído pelo hiperbólico sussurro da amante. E assim seguiram, experimentando, cada vez mais acometidos pela jubilação, até alcançarem juntos a plenitude da fruição!
De olhos bem fechados, antes que o véu retornasse ao seu rosto, sendo tragada a nudez de um murmúrio encantador, Laura seguiu para os braços do seu galanteador, ensaiando um beijo deveras refolegado. – Pena que acabou – lamentou a ruiva, com charme, tocando seu longo e avermelhado cabelo. Ainda despida, deixou a cama que testemunhara a travessura, caminhando languidamente até ao banheiro.
- Será que devo ir embora? – perguntou Armando, ainda arfante. Apesar de atleta, daquele que passa horas debruçado sobre aparelhos de ginástica na academia, faltava-lhe forças para domar os ímpetos da bela ruiva!
- Meus pais ainda vão demorar muito a chegar! Você pode dormir algumas horas, mas precisa ir embora antes de amanhecer! – respondeu Laura, antes de ligar a ducha. Impotente diante do esforço descomunal, sofreguidão praticada durante àquelas horas, Armando não podia se fazer de rogado e aceitou repousar sobre a cama dos sogros.
Fatigado, não demorou a sucumbir, sem perceber os passos dados na suíte. Sequer percebeu a figura postada em frente à cama, velando seu sono de maneira acintosa. Após alguns minutos, deslocava-se compassadamente em direção ao banheiro, deixado com a porta entreaberta. A luz paca, que emergia da lâmpada do espelho, era suficiente para deixar perceptível o vapor proveniente do chuveiro elétrico.
A água, pelando, escorria pela vermelhidão capilar e de lá percorreria todos os cantos daquele corpo exuberante, seios inebriantes, pernas tonificadas, que instantes atrás estavam sedentos pelo prazer cintilante. Mesmo que estivesse se banhando com o líquido frígido daquela noite gélida, ainda permaneceriam acesas as labaredas, bastava rememorar algumas daquelas traquinagens e quantas. Por um instante, chegou a se sentir mal, como se tivesse invadido a intimidade dos pais, profanando seu antro de amor, mas a vontade de se render ao proibido acabou sendo mais austera. Apenas Armando havia lhe despertado essa espécie de libido e ficou assim a pensar, como era bom ter encontrado a pessoa certa.
- Eu acho que vou acabar me casando com esse cara – pensava, exultante por experimentar sensações dessa magnitude, ao contrário dos outros relacionamentos aviltantes os quais acabou colecionando. Laura desligou o chuveiro, apanhou uma toalha pendurada no cabide e passou a se enxugar, começando pelos cabelos, depois as pernas, passando para as partes íntimas. Quando sentiu que poderia sair, sem deixar inundado o banheiro dos pais, deu conta que estava sendo observada por Armando.
- Meu amor, você está acordado! Por um momento, ao desligar o chuveiro, pensei ter ouvido o seu ronco. Você nunca gostou muito de me espiar tomando banho. Juro que se tivesse lhe visto antes de terminar, iria te convidar para aproveitar a água quentinha... – Laura resolveu parar de falar compulsivamente, ao perceber o silêncio do namorado.
O vapor do banho quente havia formado uma espécie de bruma e com a fumaça gradativamente se dissipando, Laura pode perceber que havia algo estranho no semblante do namorado. Ostentava um olhar enegrecido, barba por fazer, diferente de minutos atrás, o cabelo também possuía algumas mechas brancas. O que mais lhe assustou foram os olhos vermelhos, revelando um vazio nunca antes testemunhado, parecia até exalar maldade. Como em minutos, o namorado gracioso, dava lugar aquela persona tão controversa, apinhada de dualidades!
Exibia um sorriso caliginoso enquanto a olhava fixamente, intenso a ponto de despertar desassossego. – O que está acontecendo? Você está tão estranho! – indagava Laura, já em prantos. Armando, ou aquilo que tomava sua forma, limitou-se a responder: - Putinha, suja! Você é uma vadia realmente devassa! – bradou com voz repulsiva, em seguida, deixando o banheiro a passos trôpegos.
Com a toalha cobrindo o corpo, a ruiva não se permitiu nutrir raiva pelas duras palavras e adornada pelo medo seguiu até ao quarto, encontrando Armando ainda prostrado sobre o leito, em estado de pura letargia. Ainda enrolada na veste improvisada, sem vestígio da estranha aparição, faltou-lhe coragem de procurar seus rastros pela casa. Apenas deitou ao lado do namorado, também ansiava por um repouso, faltavam algumas horas para os seus pais chegarem.
Exaurida, buscou refúgio entre a amplidão de músculos braçais do desfalecido amante. Destinaria algumas horas para dormitar, mas sem piscar, mantendo a cada segundo seus olhos bem abertos!

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29 de maio de 2019

Reflexo invertido

Era um casal feliz com uma filhinha. Até que a criancinha... morreu! Uma trama tão sórdida não poderia ter outro cenário senão a velha choupana, verdadeiro pardieiro de madeiras pútridas e rangentes, onde a família se escondia durante certos dias. A atmosfera lúgubre até serviria de prenúncio para anunciar a desventurada incursão, mas o desejo de abordar a freneticidade urbana levava pessoas como aquela a abdicar de qualquer lampejo de sanidade. Até o mais acentuado devaneio, semeado para proporcionar algum líbito da realidade perturbante, esmoronaria diante de opções mais vistosas, como um resort de frente para o mar ou dois dias em algum luxuoso hotel. Com um pouco de imaginação, o humilde casebre poderia converter em um lugar acolhedor, bastava não reparar, principalmente, nas goteiras que encharcavam parte do assoalho mofado. Sem televisor, computador, chuveiro térmico, e até energia elétrica, a iluminação rarefeita das velas era o cenário perfeito para contar histórias de terror, ou simplesmente se deliciar com o duelo de baratas gigantes digladiando-se contra escorpiões impetuosos. Alguns deles ansiavam por ser o dono do pedaço. O pavor ensaiava tomar conta de todos quando a força do vento ensandecido se chocava contra a porta. Era como se alguém estivesse batendo forte, espreitando, os jogos perigosos aqueciam a inventividade, uma profusão de sobressaltos deveras inquietantes. Lá fora, em meio à mata, o vendaval impulsionava a chuva a atingir, com robustez, o telhado e paredes da choupana, ao mesmo tempo, flashs de luzes latejantes cortavam o horizonte desalumiado, chegando a transpassar as janelas, cintilando os cômodos.
Minutos depois, de mandar a Filha subir para escovar os dentes e se preparar para dormir, Pai conferia os tributos da Mãe. Mais um pouco o deleite faria esquecer-se de seguir para o quarto, não podia faltar o sacramento, em forma do beijo de boa noite. No curto percurso, tomou para si a recomendação de caminhar paulatinamente, olhando bem onde pisa, aquela altura as tábuas pouco resistentes já não suportavam serem submetidas a ainda mais peso por mera afobação.
Ao abrir a porta, encontrou a Filha sentada sobre a cama, inerte! – Está tudo bem com você, meu amor? – perguntava o Pai, estranhando o silêncio da menina! - Está tudo bem com você meu amor? – insistia o pai, cada segundo mais ansioso pela resposta!
A garotinha respondeu apontando o dedo para a porta fechada do banheiro, quando Pai se deu conta do ruído de água corrente jorrando pela torneira! – Pai, tem um monstro escondido no banheiro, Pai – explicou. Tomado pela fúria, Pai não percebeu que a voz da garotinha estava um tanto diferente, marcada por rouquidão. Apenas queria bradar algo do tipo: - quantas vezes Filha, tenho que dizer para você desligar a água quando sair do banheiro. Isso é desperdício, nosso líquido mais precioso corre risco de escassez... No entanto, antes de começar a lição, notou que algo ou alguém, simplesmente, fechou a torneira! – Amor, é você? – indagou em voz alta, o último fio de esperança, sabendo que a mulher estava embaixo. – O que foi, querido? – a resposta, cercada de incerteza, deixou o pai atemorizado, alguém estava lá, mas não era para haver um quarto elemento na choupana!
Antes de seguir até ao banheiro, voltou a olhar Filha, ainda sentada na cama, ostentando um semblante insólito, transparecendo medo e certa excitação. – Parece que as histórias de fantasma mexeram com você – afirmou Pai, enquanto seguia em direção à porta, cada passo mais perto da verdade que desvendaria o assombroso mistério!
Antes de tocar a maçaneta, a porta passou a se abrir lentamente e o estridente rangido adornava a ambiguidade. Lá estava a garotinha, sentada na privada, sorrindo para o pai, ludibriado pelos seus olhos que reproduziam duas Filhas, em planos tão próximos quanto distintos. Estático, ainda não podia ver que na banheira, instalada de frente ao sanitário, repousava os nacos de uma criança, enrolados em um lençol pintado pelo mesmo mar de sangue que profanou a singeleza da garota.
Para sempre Pai seria pai de uma filha morta e outras duas erigidas do desconhecido!

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9 de abril de 2019

Galanteador aposentado

Certas realidades podem vir à tona da pior maneira possível, na forma de um metafórico soco no estômago, embora sempre acabe brotando uma ponta de esperança no final... Morar próximo a shopping tem seus atrativos, basta pensar em uma tarde ou noite enfadada e o passeio é logo aventado, nem que seja apenas para “matar” o ungido do tempo.
Como as coisas costumam acontecer quando menos se espera, às vezes, incursões despretensiosas tornam-se efetivamente burlescas. Era mais um dia peregrinando pelas vidraças, pensando como as coisas estavam caras, cantarolando algumas canções da biblioteca musical do celular, quando fui sucumbido por uma aparição, não bem um fantasma, mas podia, não apenas, parar meu coração, como fazê-lo bater ainda mais depressa.
Embora estivesse acompanhada, a princípio não pude notar a existência da persona ao seu lado. Afinal, vivenciava um espetáculo fílmico, o espectro entrava em cena intempestivamente e como num mero estralar de dedos, todos voltavam o semblante para contemplar sua passagem. Vislumbrava seus cabelos negros e lisos, movendo-se pelo ambiente, espalhando um cheiro de flor enquanto caminhava compassadamente, esbanjando sexualidade ao ostentar o par de pernas encarcerado naquela saia justa, membros aparentemente confeccionados por poetas visuais da envergadura de Leonardo da Vinci.
A narrativa ainda se mostra ineficiente para caracterizar a bela figura, com no máximo 21 anos de idade, muito além de um cabelo formoso aliado a pernas deslumbrantes, detalhes que até poderiam passar despercebidos diante do carisma advindo daquele efusivo sorriso, olhos negros penetrantes, apinhados de amabilidade, semblante de uma pessoa singela, carisma puramente natural, tão autêntico como o pôr do sol ou a força da gravidade.
A delicadeza de seus lábios abrasados me deixava circundado pela castidade, talvez forjada por leve inspiração ao exagero, até reparar: vinha sendo fitado por outra pessoa, rompendo assim o transe. Era uma mulher, praticamente da mesma altura e com feições semelhantes à bela figura, mesma pessoa que desde o começo a acompanhava e anteriormente não havia percebido. Com 40 a 42 anos de idade, nitidamente conservava a beleza de outrora, despertando atenção pelo charme, também a chave do mistério, simples presumir de onde advém tanta beleza e poder de sedução daquela jovem.
Quando nossos caminhos cruzaram, com os mesmos trejeitos da sedutora aparição, aquela mulher sorriu pra mim, um olhar misterioso, tão envolvente quanto intimidador, portanto para não romper à incógnita nudez daquele momento, segui sem olhar para traz. O tempo passa e pode ter levado consigo meu sucesso com as “novinhas”, mas enquanto me reservar a singeleza de um sorriso como aquele, não poderei me queixar!

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4 de abril de 2019

Filosofando com o homem morto

Que possa padecer no inferno, o primeiro verme que se deleitou com a podridão do meu cadáver, afinal vocês não sabem como pode ser lúgubre os dias, aprisionado nessa caixa de madeira soturna, tendo como companhia apenas as próprias criaturas nefastas que se divertem cavando túneis, quilômetros de microvias por entre o universo de carne morta. Enquanto sirvo de banquete para esses miseráveis seres, sobra muito tempo para refletir. Se tivesse papel e lápis, até me arriscaria a poetizar, não tive tanto tempo para compor versos em vida, agora, ao meu dispor todo tempo do mundo, vejo-me incapaz de registrar minha arte.
Numa oportunidade qualquer, regada à pura nostalgia, não deixei de pensar na família. Coincidência ou não me visitaram no mesmo dia, uma conexão pós-morte, trouxeram flores negras e murchas. Gritei que estava aqui, podia ouvi-los, que sentia saudades, mas acho que o som não emergiu até a superfície, talvez simplesmente não tivessem coragem de escutar. Na mente ideei que pudesse lhes escrever, narrava que as noites costumavam ser frias, capazes de ranger os dentes ou aquilo que sobraram deles. Em contrapartida, os dias eram demasiadamente quentes, fazendo-me sentir saudades das gélidas gavetas do necrotério, como mantinham o frescor da carcaça sem vida.
As noites tempestuosas despontavam como verdadeiros desafios. Cada relampar parecia um anúncio para o fim do mundo, os lampejos eram intensos, capazes de sobrepujar a terra, invadindo as frestas da madeira para irradiar aquela exígua cova. Se os estampidos, provenientes das trovoadas, eram assustadores, as chuvas sempre configuravam a pior parte da desventura.
O volume de água pluvial, gradativamente, infiltrava o cimento gasto, levando poucos minutos para cruzar os sete palmos de terra, e mais rápido transpassava a madeira para inundar todo o caixão. O medo de não conseguir respirar, em meio ao dilúvio, fazia-me sentir vivo, ao menos por meros instantes. Uma parte d’agua entrava pela boca, matando a sede que já não sabia se sentia. Devo admitir: o momento mais divertido era quando o líquido gelado, meio negro por conta da mistura com a terra, escorria pelos orifícios abertos pelos vermes malditos, agora sem saída, meu corpo passou a ser a prisão. Acuados, até podia ouvi-los exalar os últimos suspiros, estavam sepultados dentro de mim, a fusão em um só cerne.
Nas primeiras horas da manhã, o sol volta a irradiar no horizonte, tudo acontece como verso e reverso. Será que algum deles virá me ver hoje? Esse vai ser mais um dia quente ou teremos um pouco de chuva para equilibrar o calor? Dessa vez, os próximos vermes virão depressa, ou passarão dias como da última vez? Na iminência da chegava, estou curioso: os novos invasores das trevas irão aproveitar os caminhos trilhados pelos antigos devoradores ou preferirão pavimentar novos caminhos, desbravando o desconhecido?
Em meio a tantas indagações, impossíveis de presumir nesse momento, estou pronto para mais um dia, fadado a ser igual ao ontem e nada diferente do amanhã, com futuro e passado compondo um mesmo presente. Numa tentativa de mudar essa realidade, ainda reuni, em vão, as últimas forças para tentar erguer o corpo desfalecido. Não pensem que queria fugir do sepulcro, apenas pela milésima vez arriscava ler a mensagem gravada na lápide, todo homem morto deveria ter esse direito.
Resta apenas, com a licença de todos, recolher-me a brevidade do sono eterno. Podem me visitar quando quiser, basta ter disposição para filosofar e depois tocar a campainha da eterna morada!

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28 de março de 2019

Quem “bate” também pode não esquecer jamais

“Quem bate, esquece; quem apanha, não”. Todos, em algum momento, devem ter cruzado com essa expressão e se fruído com os chamados ditos populares, que se carregados de senso comum, esbanjam poder de retratação. Como nessa perspectiva, baseada na assertiva de as pessoas serem capazes de relevar, por exemplo, aquilo o que se diz, mas geralmente nunca a dor causada de maneira concreta.
Sem qualquer intenção de, digamos, abjurar os chamados ditos populares, acabei contrariando a regra, afinal: às vezes quem “bate” acaba se vendo mais fincado às consequências de seu lastimável ato, em comparação ao alvo da ação impetuosa. Furtiva, a trama não foi presenciada por mais de três ou quatro pessoas e mesmo não desvelando qualquer aspecto onírico, representa uma das maiores compunções que carrego na vida. Os acontecimentos se sucederam no começo da década de 90, não tinha mais que 12 anos. Quando se é apenas uma criança, as opções de entretenimento, distantes de variadas, mostravam-se realmente restritas, indubitavelmente terminando num passeio despretensioso, seguido por uma apetitosa fatia de pizza, no shopping center da cidade. Essas incursões ainda tinham um atrativo que embalava a gurizada daquela época, o game Street Fighter, pois entre tantos “Hadokens” e “Shoryukens”, a rivalidade acabava aflorando, saltando das telas e, com isso, os fliperamas quase se tornavam verdadeiros campos de batalha.
Certa feita, estava com um amigo, apenas vislumbrando uma acirrada disputa entre dois desconhecidos. Os jogadores eram muito hábeis, a ponto de meu colega e eu não ousarmos desperdiçar nossas poucas “fichas” para embarcar no desafio, a derrota era iminente, precisando mais do que um milagre para garantir um triunfo derradeiro. Como também era possível se divertir observando os outros brincarem, lá estávamos transmitindo empolgação, e próximo da máquina, os eventos ainda eram testemunhados por um quinto elemento, que só percebi a presença ao acaso, ao fazer algum comentário que hoje sequer recordo qual, sendo assim impossível a reprodução.
Certo é que o tal quinto elemento, um garoto de cabelos loiros e lisos, aparentemente um pouco mais novo, apesar de não me conhecer, respondeu minha colocação em tom de deboche, seguido de uma risadinha dotada de peculiar cinismo. Apesar de ter refutado meu argumento com insolente ironia, arrancando risadas até do meu amigo, ao invés de ficar quieto e seguir a vida, num misto de egocentrismo e inocência, tentei justificar. O quinto elemento era realmente uma figura marrenta, aproximou-se e não hesitou em farpear mais. Ridicularizado, resolvi contar até dez para não voar no pescoço do galeguinho folgado, mas quando estava no número seis, acabei desferindo um tapa seco no rosto do garoto, que antes de mudar suas feições, reprovando a agressão sofrida, permaneceu postado em minha frente, atônito. Qualquer vestígio de risada havia cessado, os jogadores mantiveram-se em aparente concentração, talvez não tivessem percebido a animosidade, mas lembro da voz surpresa do meu amigo:
- Rafael pow, que é isso cara! Você bateu no guri, ele só estava brincando – Foram exatamente essas palavras, não tão duras, mas suficientes para sobrepujar a ira e cavar um túnel para nortear as ações. Inteiramente desarmado, apenas desviei o olhar enquanto o quinto elemento, trajado a vergonha ou sentimento similar à desonra, não hesitou em se recolher, estratagema semelhante ao qual deveria ter adotado antes de abdicar a razão diante da tênue adversidade. Temi que, em questão de minutos, surgisse um irmão mais velho, grande e forte, impelido pelo desejo de vingança, querendo lavar com mais violência a honra do irmão, realmente sovado por razão fugaz.
Certo é que ninguém apareceu e a desventura consagrou mais um passeio que, literalmente, terminou em pizza, dessa vez sem o deleite propiciado pela saborosa calabresa coberta por catupiry e queijo mussarela derretido. Passaram-se tantos anos, aquele olhar triste e desolador ainda me assombra. Era apenas uma criança, madura o suficiente para saber: o garoto realmente não merecia. Nunca esquecerei aquela tarde, tendo a disputa de Street Fighter como pano de fundo, com o golpe arrebatador desferido fora da tela. E tal ação... ainda fulge.

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