23 de dezembro de 2010

Vestido de Noiva – A vida e a obra de Nelson Rodrigues II

Clique aqui para acompanhar a primeira parte do textoContextualizando Vestido de Noiva

Breve síntese sobre a trama de “Vestido de Noiva”.

“Som de buzinas, carros, movimento. Alaíde é atropelada na rua por um automóvel que foge sem prestar socorro. Levada ao hospital em estado de choque, é submetida a uma operação de urgência. A imprensa divulga notícias sobre o acidente e o estado da vítima. Alaíde não agüenta e: morre!”

Quando ideada unicamente por essa perspectiva sintética, “Vestido de Noiva” denota a condição de uma proposta simplória no quesito enredo e até dotada de certa banalidade criativa. No entanto, essa se resume a uma das dimensões da peça, a de menor relevância talvez. Atrelado a essa história, que corresponde ao plano da realidade, coexistem outros dois campos: da alucinação e da memória. E esses últimos são os que não somente povoam o palco, como se apresentam as minúcias. A realidade serve, na verdade, apenas para delimitar as bases cronológicas da história.

“Uma luz me atrai, um rosto, um véu que cai na nudez desse momento... Quando o véu caiu, vi que ela não tinha rosto!”. A frase, que faz parte de uma inspiração individualizada abstraída das diretrizes da obra, expressa um pouco do arquétipo contextual desencadeado pelo texto, despertando dessemelhantes efeitos pelo apurado trabalho com a linguagem, seguido pelo adequado tratamento ao tema, despojado da leveza da cena na composição dialógica desnudada, evidenciando, seja no texto ou palco, a profunda angústia do autor.

Os três níveis de montagem – que Nelson Rodrigues indica no princípio do texto – constituem a expressão teatral desses aspectos do quais, em dois dele – alucinação e memória – partem diretamente do íntimo de Alaíde, personagem central no enredo da peça. As cenas são fruto do seu subconsciente, enquanto a realidade se confronta com Alaíde, em estado de coma, na mesa de operação, lutando contra a morte. Além dos demais eventos que sucedem o acidente: a movimentação dos repórteres, a reclamação de uma leitora de um jornal sobre o abuso de velocidade dos automóveis, a conversa do marido Pedro com os médicos, a morte da protagonista, o velório, o luto dos parentes e finalmente o casamento de Pedro com Lúcia, a irmã de Alaíde.

No plano da alucinação, seu subconsciente traz à cena, sob a forma de vários episódios, alguns especialmente caóticos, a busca pelas imagens responsáveis por recompor sua personalidade. No texto, passando uma curta referência ao acidente, ela começa a divagar a procura de Madame Clessi, famosa prostituta do início do século, cujo num contato – na base do por acaso – com seu diário, constituiu motivo de fascínio para Alaíde.

A Madame Clessi apresentada ao público, não corresponde à personagem real. Na verdade o texto não compreende essa interação, sendo a imagem de Clessi uma representação criativa de Alaíde, que adquiri perante a protagonista, a condição de símbolo da libertação, quanto a prostituta do início do século, que havia residido na casa em que então moravam os seus pais. Ante o propósito dos pais de incinerarem os pertences da cafetina, que haviam ficado no sótão da casa, a filha consegue resgatar o diário dela e acaba conhecendo detalhes de sua trajetória, complementando as informações com recortes de jornais da época, encontrado na Biblioteca Nacional.

A atração por Madame Clessi, assassinada por seu amante adolescente, é a soma da repressão libidinosa, e corresponde apenas ao íntimo da antes adormecida, mas, nessa busca desenfreada, Alaíde realmente procura a si própria, fugindo da decadente relação conjugal com Pedro.

Os passos seguintes é até simples presumir, um passeio pela mente da protagonista, onde as memórias se misturam a sua imaginação delirante. O espetáculo montado por Nelson Rodrigues, aliado a precisão textual característica, referência claramente o clima de sonho, os devaneios são constituídos através de diálogos inverossímeis, hora até deixando o expectador (leitor) perdido.

E isso é comprovado no decorrer da história, do ponto que Alaíde encontra na figura de Clessi, o apoio necessário para a reconstrução dos fatos passados e até a revelação subconsciente de seus desejos, entre os quais está o assassinato de Pedro, como retaliação à contextura macabra que ele perpetrara envolvendo até a sua própria irmã.

Entretanto, gradativamente, as defesas sucumbem, figurando na comiseração de remorso que até aquele momento lutara por esconder. Pedro antes era namorado de Lúcia e Alaíde o roubou da irmã, posteriormente se casando com ele. A culpa – sem saber – faz com que projete cenas de amor entre o marido e a irmã, levando a impulsivamente concluir que o acidente foi premeditado pelo marido. Inconformada com as convenções sociais de repressão à mulher, Alaíde – não conseguindo em vida opor-se a elas –, manipula as pessoas com seu poder de sedução.

Enquanto que correndo risco de morte, o desejo de transgressão que parte de Alaíde toma corpo e salta aos olhos nas cenas em que se torna amiga da prostituta e conseguindo inclusive matar, com a maior frieza, o marido traidor. Quem morre mesmo é Alaíde no campo da veridicidade e uma nova peripécia, a peça já em seu desfecho, ganha novos rumos, atingindo outras condições conflitantes. Primeiro com a sua irmã Lúcia, corroída pelo remorso, recusa as investidas do cunhado: “Jurei que nem um médico veria meu corpo”. Mas, como nem tudo que reluz é ouro, numa ligeira sucessão de quadros, o expectador testemunha a ida de Lúcia a uma fazenda e seu retorno quando volta mais “gorda” e “corada” e pasme-se, disposta agora a se casar com Pedro. O desfecho interage com a perspectiva de que: a vida prossegue verossimilhante, indiferente das tragédias habituais.

Na ausência de um narrador, como previsto na posição dramática, a narração fragmentada é funcional, a rapidez dos flashes acompanha o delírio progressivo de Alaíde. No nível da realidade final – o casamento entre Lúcia e Pedro – até parece ser a personificação de um delírio pós-morte de Alaíde. Nesse específico literário, a linguagem, sem dúvidas, é a principal virtude, num misto de ironia e amargor.

Aspectos psicológicos do texto

Utilizando uma linguagem expressionista, o clima de tensão é característico, seja nas passagens entre Clessi e Alaíde, ou durante as desavenças com Lúcia no plano da memória. A tensão é característica em cada um desses períodos, levando a ação, sem perda de tempo ao seu final. O ritmo contínuo e acelerado para a finalização obriga ao texto cortar qualquer acessório que comprometa sua intensidade rítmica.

Em “vestido de noiva”, o expediente linguístico no teatro denota como fio articulador entre personagens e a ação. A unidade de ação abre espaço também para a discussão os elementos tempo e espaço. O fator tempo também se destaca. Nelson Rodrigues faz com que esses e demais elementos como linguagem e ação trabalhem um em função do outro, numa perspectiva única e diferenciada. E isso é possível pela perspectiva dialógica, que revela as forças contrárias que antagonizam as personagens desencadeando os conflitos.Não apenas à peça como o próprio Nelson Rodrigues são excessivamente freudianos, já que os planos da alucinação e da memória se passam no subconsciente de Alaíde. Sua relação com Madame Clessi, denuncia, uma Alaíde entediada com o casamento, desejando uma vida de desventuras, repleta de homens, fantasias e grandezas. Exatamente como a prostituta, mundana que ela conheceu através de um diário deixado pela "madame" no porão da casa onde morava e que depois foi de Alaíde.

Os desejos reprimidos de Alaíde vêm à tona somente no plano da alucinação. É nesta dimensão que ela mata o marido Pedro, por exemplo. Os planos mostram, portanto, atitudes diferentes e muitas vezes contraditórias. Uma ação ocorrida num plano em breve produzirá outra versão num plano diferente, impedindo que o espectador faça uma leitura definitiva a respeito das personagens, dos fatos e até mesmo da seqüência tempo-espacial do texto.

Apesar de funcionar como uma representação da mente decomposta de Alaíde, dividida entre o delírio e o esforço ordenador da memória, a peça decorre mesmo após a morte da protagonista. Rápidas seqüências se sucedem, como o remorso e a recuperação de Lúcia, chegando até seu casamento com Pedro.

Em “Vestido de Noiva” a psicanálise reside na constante luta contra o impulso, uma verdadeira batalha instintiva entre o impulso de vida e de morte, girando ambos entre os princípios do prazer e o de realidade. Madame Clessi é uma tentativa do seu consciente de se recuperar, mas como presa a própria psicanálise, o paciente doente não é capaz de resolver o conflito. O sinal da saúde é uma habilidade de equilibrar direcionamento e realidade em solucionar conflito.

Cena de uma apresentaçãono teatro:


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