6 de fevereiro de 2011

A ‘demolcracia’ numa fila de cartório

Por: Thiago de Brito Varjão*

Debates políticos, denúncias de corrupção, navalha, sanguessuga, cueca com dólar, mensalão, desvio de verbas, quebra de sigilo fiscal, aborto, privatizações e dentro de todo este processo ‘político’ estava o rezoneamento.

Último dia para o rezoneamento eleitoral, que servia apenas para dizer se o cidadão queria ou não mudar a seção onde vota. Nove e meia da manhã. Já em frente ao cartório depara-se com uma fila de uns cem metros. Era uma fila para se entrar em outra fila, afinal brasileiro é um bicho curioso tem uma paixão especial por filas. É fila para ir ao estádio ver o time decadente da cidade perder, é fila para ir ao cinema, para ir ao teatro, para ir ao banco pagar a conta de água vencida, para ir ao dentista e também a fila para se entrar em outra fila do cartório para se cadastrar no rezoneamento. Haja fila (mais uma vez me deparo caro amigo com estas benditas repetições inebriante, não as leve em conta).

Aquele sol escaldante batia nas cucas dos pobres romeiros, cuja religião e penitência era o rezoneamento, devia estar fazendo uns trinta e cinco graus à sombra. Pobres nauseabundos gemiam diante da força implacável de Aton. Quarenta minutos depois pega-se uma parte da marquise na sombra, eis que chega uma figura franzina mais ou menos um metro e sessenta, rosto largo, mas o resto do corpo era fino feito aquele personagem do desenho do marinheiro Popeye, a Olívia Palito, sandália de dedo quebrada presa por um prego na parte inferior e ombros tendo como penduricalho uma mochila. Dez minutos, vinte, trinta e a bendita fila não andava, o sujeitinho começa a balbuciar algumas palavras. Mais dez minutos e a paciência do indivíduo chega ao fim, e ele começa a falar, falar e falar. Sua oratória juntava o público que estava ao seu redor, umas três ou quatro pessoas. Foi aí que percebeu-se sua importância, pois tratava-se do cientista político de filas e neste caso da fila de cartório de rezoneamento, com um discurso afiado falando sempre mal de tudo. Berrou:

– Isso é um abuso! Somos obrigados a votar, a pagar uma ruma de imposto, e não temos nada de volta, é uma violência. Ainda dizem que a gente ‘veve’ numa ‘demolcracia’.

Aquele homem tinha o dom da oratória, falava tanto quanto um padre em dia de quermesse. Cada vez mais pessoas chegavam perto dele, o seu clã já continha onze ou doze pessoas, todos discutindo e reclamando da política, da polícia, do preço da passagem, do preço do gás de cozinha, do preço da carne que está pela hora da morte e também da fila do rezoneamento que estava empacada feito burro manso. Ele apresenta-se, João é seu nome.

João, este cientista político popular de rezoneamento discutia também sobre economia, falava de quantas cervejas dava para comprar com seu salário, filosofias de boteco de esquina e entre outras anedotas. João destacava-se entre os participantes daquela peregrinação, observava os outros personagens da fila, tais como o Mané Gostoso com seu cabelo penteado para cima, camisa regata mostrando seus ossos e pelancas e com um walkman em um volume tão alto que dava para ouvir “No toca-fita do meu carro uma canção me faz lembrar você” do cantor brega-popular Bartô Galeno. Mas de todos os participantes quem mais incomodava João era um guri gritalhão filho de uma perua de estatura mediana, tipo um metro e cinqüenta, saia longa azul, sapato bico fino e um cabelo cor acaju moldado em uma chapinha. Outros coadjuvantes juntavam-se a peça e diziam amém às profecias do João.

“Tudo é culpa do povo brasileiro”, disse ele. O brasileiro deveria ser um objeto de estudo sério dos Sociólogos e Antropólogos, pois tudo sempre cai em suas costas fracas, não que Darcy Ribeiro, Roberto Damatta, Gilberto Freyre, entre outros já não tenha o feito, mas estou falando em um estudo numa ótica popular, menos academicista (caro leitor os neologismos aplicados nesse texto ajudam na falta de léxico apropriado). O povo brasileiro é como um grupo de pessoas ao qual João não participava, ele estava à margem do processo. Se temos políticos corruptos é culpa do povo, se o salário é baixo é culpa do povo. Mensalão, navalha, sanguessuga, dinheiro na cueca, privatizações? Culpa do povo! Se o feijão queimou também é culpa do povo que colocou olho gordo na fartura dos outros, se o vizinho é impotente é culpa do povo invejoso e das vizinhas macumbeiras que puseram feitiço no Tião para tirar a alegria da face de sua digníssima esposa, e por fim se temos filas para rezoneamento é culpa do povo.

– Olha a água mineral, a cervejinha e o suco de ‘acelora’, gritava o trabalhador informal.

Outra característica do povo brasileiro é de sempre ter um ambulante com um isopor vendendo coisas, é no campo de futebol, na fila do cartório, até na visita do papa ao Brasil (enquanto se dizia amém entornava-se a gelada, aleluia!) se via ao longe aquele isoporzinho branco repleto de cervejas geladas desfilando para cima e para baixo. A fila finalmente se movimenta em um espetáculo de pernas se movendo da esquerda para a direita, como em uma Milonga que até Carlos Gardel ficaria invejando. Sala dos guichês. Ar condicionado. Cadeiras de espuma. Mas esse paraíso cai por terra, quando os números são distribuídos. Número cem marcava o guichê, número cento e setenta marcava o papelzinho de João. Aquele Jardim do Édem com condicionadores de ar não suportava aquele batalhão de gente. Um guarda diz:

– Bem, pessoal, vamos organizar aqui. Vamos para outra sala, porque esta aqui tá lotada.

Aquele bailado de pernas antes conduzido pelo tango de Gardel, agora se transforma em um final de festa de arrocha regado com muita cachaça barata. João perdia seus companheiros de debate, deviam estar cansados depois de tantas danças.
Dez minutos, vinte, trinta, número cento e cinqüenta. Chá de cadeira e dor nas pernas. João ainda falava sobre ‘demolcracia’ para uma platéia de cadeiras vazias e atendentes mal encaradas.

Número cento e setenta. O cientista político levanta-se e vai se rezonear. Decide continuar votando na mesma seção do seu bairro. Pronto, seu papel como cidadão presente nos processos políticos e eleitorais estava cumprido, responder apenas ao velho SIM ou NÃO.

Bate meio-dia, hora sagrada nesta terra tupiniquim onde a fila é uma religião. Rezoneamento não serve para nada ou seria mais uma equação filosófica complexa de ser resolvida? Discussões à parte, a ‘demolcracia’, o isopor ambulante e o povo continuam seus trajetos pelas veredas da vida.

Feliz. Cumpria seu papel integral como cidadão presente nos assuntos políticos do seu país, sim seu papel como cidadão presente nos processos democráticos estava cumprido, agora era votar no menos pior, escolher entre Astrojôncio da Silva Lero-lero que prometia aumento do salário no início do ano, além de criar o programa Bolsa Idoso, ou votar em Chiquita Lesco-lesco que prometia a continuidade do que já estava implantado no país.

A saga do rezoneamento termina e João se mistura em meio à multidão.

*Jornalista, estudante de letras e um bom amigo

11 Coveiros:

Raul disse...

Morri de rir, é tudo verdade!

Anônimo disse...

O cara traçou bem o perfil da polpitica no brasil

Aninha disse...

Belo texto!

Rafa Flori disse...

Bonito o texto!

Anônimo disse...

O tema já é meio batido mas o texto n tah ruim!

Lara Veiga disse...

É a política brasileira inspirando a arte de seu povo.

Annie disse...

Texto diferente do que costuma ser postado \aqui, muito bom!

Mullher Junior disse...

A foto contempla bem o texto!

Anônimo disse...

interessante sim!

larisse disse...

política é a merda do brasil

Luis A. de Caso disse...

Olá Rafa, legal seu blog, estive, verificando os comentarios no meu blog e te descobri lá rsrs, valew por comentar,em agradecimento deixo um comentário aqui e recomendo seu blog, se tiver enterece em, anunciar seu conteudo no meu blog, fazemos uma troca de Divulgação!!!!!!!
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