30 de outubro de 2009

O Delírio e a Imaginação de um Cavaleiro Andante

Às vezes, a vida de uma pessoa pode mudar. Como em outras ocasiões também, quem muda é o próprio indivíduo. Mas, quando as duas coisas ocorrem ao mesmo tempo, sem acompanhar precedentes, significa que você faz parte do fantasioso mundo criado por Miguel de Cervantes, o fantástico Dom Quixote de La Mancha.

Escrito no Séc. XVII, o livro até hoje é considerado uma das maiores obras literárias de todos os tempos. Composta por 126 capítulos, a história é narrada na mais fina prosa castelhana, com a figura de Dom Quixote sendo descrita em ritmo dos romances de cavalaria, repleto de tramas fantasiosas que retratam os preceitos que regem esses heróis de fancaria. Abordando sempre preceitos como amizade, sabedoria, encantamentos, loucuras, enternecimento e claro, o que não podia faltar, muita diversão.O início da história é até certo ponto simplório. Começa por um estranho e contraditório perfil de cavaleiro andante, que perdendo a noção da realidade, embarca acompanhado por Sancho Pança – seu fiel escudeiro – rumo a uma aventura de sonhos, percorrendo várias terras durante longas caminhadas pela Espanha em busca de feitos heróicos. A partir dessa premissa é que - aos poucos -, são apresentadas as maravilhas da obra. Dentro de uma época em que os livros de cavalaria eram um gênero literário muito popular, sempre narrando histórias fantasiosas, com personagens de boa índole que dedicavam sua vida a proteger fracos e oprimidos das inúmeras situações de perigo, na luta constante para que prevaleçam ideais como paz, amor e principalmente justiça.

Dom Quixote e Sancho Pança: A Busca do Eu no Outro

Uma vez criado a partir dessas personagens dos romances de cavalaria, Dom Quixote não se resume a uma grande amalgamação dessas histórias, isso por conservar características como originalidade e particularidade no que diz respeito as suas ações. A personagem de Cervantes, tanto gostava de ler esses livros que absorveu todo seu conteúdo para dentro da sua própria vida, enlouquecendo a ponto de encarnar os seus heróis e lutar contra seus inimigos destemidos. Assim nascia a lenda de Dom Quixote, também conhecido como o Cavaleiro da Triste Figura.

Antes de incorporar a lendária figura de Quixote, a identidade real da personagem era de um homem nobre que se chamava Alonso Quijano, que além da influência dos livros de cavalaria, outro motivo que o fez se lançar no mundo foram suas devoções a esses ideais. Vestindo uma antiga armadura e apelidando um cavalo velho de Rocinante, não apenas representa uma ridicularização aos romances de cavalaria, assim como o lado espiritual do homem, sua essência naturalmente humana e sem esquecer o valor contido em seus sonhos.A princípio, as aventuras do antes nobre e agora enlouquecido cavaleiro, não eram o bastante para tornar suas aventuras tão maravilhosas em proezas. Para constituir gradativamente o seu legado, como acontecia na literatura com os homens da cavalaria, entrava em cena a sua imaginação delirante, que lhe permitia que fossem feitos alguns ajustes na realidade, que constantemente se misturava a sua imaginação extraordinária, estabelecendo novas adequações à criação desse novo “real”. Em sua jornada, monges inofensivos eram tratados como perigosos feiticeiros, lutava contra moinhos de ventos como se fossem gigantes malfeitores. E paralelo a todo esse mundo de ilusão, o cavaleiro tinha uma única certeza, apenas ele poderia derrotar todo esse mal que se alastrava e assim trazer paz e justiça para a Espanha.

Agora, uma coisa parece está faltando. Baseado em uma perspectiva que gira em torno de uma sensação de perda, precisamente um imenso vazio. Todo herói que se preze, necessita de um motivo a mais para lutar, algo que lhe sirva como uma espécie de inspiração, a inesgotável fonte de energia que só pode provir do poder contido na paixão. A verdade é que nem isso Cervantes deixou passar e com um importante detalhe, tratando-se de alguém como o Cavaleiro da Triste Figura. Esse sentimento, não poderia ser expressado através da personagem de uma dama qualquer e sim de um amor que também se mistura a sua própria imaginação. E então Dom Quixote segue a fantasiar uma dama só sua e ele mesmo a intitulou como Dulcinéia del Tomboso. A jovem nada mais é do que a figura de uma pobre camponesa, mas que ele elegera como a mulher ideal, como uma rainha a quem dedicaria todo o seu amor, as maiores glórias que conquistasse.

Ainda faz parte de seu universo um homem de sua aldeia, o gorducho Sancho Pança, um lavrador que Dom Quixote teve a felicidade de encontrar e lhe promover como seu fiel escudeiro. Sancho tem um papel de primazia no desenrolar da trama, cheio de responsabilidades e preocupações, vivia em um mundo totalmente oposto ao de seu cavaleiro. Inclusive, a forte amizade cultivada por ambos, até pode ser considerada como uma das manifestações mais importantes no aspecto entre “pessoas diferentes” uma vez já descritas na literatura.A relação do cavaleiro andante e seu escudeiro não se limitam as suas diferenças dentro do universo da obra. Na história, depois que partem em busca de aventura, a narrativa dá um salto e passa a atuar em dois diferentes planos. Primeiro o imaginário que seria o mundo de Dom Quixote e o plano real que está representado pela visão de Sancho e serve ainda para direcionar o leitor durante a leitura do livro.

Cervantes ficou conhecido como um dos maiores escritores do mundo e esse título, sem dúvidas, foi-lhe conferido pela habilidade incomum para dosar elementos como imaginação e realidade. A alta demonstração de inventabilidade é atestada durante as construções do plano da imaginação que mesmo sem ter recursos como da imagem, o texto é necessariamente preciso ao ponto de manter toda a forma e a dimensão estrutural presente no mundo real. E esse êxito certamente é garantido – e só se faz possível – pelo amor que Dom Quixote dedica aos seus sonhos, que são adotados pelo cavaleiro como uma maneira única de enxergar o mundo.

Dom Quixote por Orson Welles

Como pode, Dom Quixote de Orson Welles? Ainda hoje são muitos aqueles que se fazem essa pergunta. Estão enganados aqueles que imaginam que o cultuado cineasta ressurgiu das cinzas, enganando os caprichos da morte para compor essa obra. O filme faz parte de um antigo e longo trabalho de Welles que realizou a partir de 1957 e que se prolongou por mais de uma década sem que tivesse uma montagem definida.
Todo o material cultivado durante esses anos estava completamente entregue as traças. Estava, a ter ser recolhido por uma equipe dirigida por Jess Franco – amigo e colaborador de Welles – que reuniu todo o material e montou a obra apresentada em 1992 em uma seção de 116 minutos. A obra da produção até certo ponto é simples, o cineasta mergulha no romance de Cervantes através das personagens de Dom Quixote e Sancho Pança que viajam pela Espanha de 1960.



O grande atrativo está no conteúdo e na sutileza do trabalho. A obra de Orson Welles não segue a risca – cena por cena – o romance que o inspirou, no entanto é de uma fidelidade absoluta com as duas personagens de Cervantes, mostrando bem o cavaleiro andante que partiu ao encontro da humanidade e da glória, encarnando o ser humano como algo que beira o ridículo ao sublime, a alegria e a tristeza, o real e o imaginário, todos se alternando de forma peculiarmente brilhante e inesperada.

Mesmo se tratando de uma obra póstuma sem coerência narrativa ou estética, o filme é um apanhado de momentos como diversão e magia, tudo dentro de um denso clima de originalidade. A história é narrada pelo próprio cineasta em OFF, sendo importante salientar que essa não representa em qualquer hipótese a voz autoral de Cervantes. O filme até pode ser definido como um ensaio quixotesco, Akim Tamiroff impressiona ao protagonizar o papel do cavaleiro andante, inclusive fisicamente pelo aspecto alucinado que chega até a beirar o patético. Enquanto Francisco Reiguera também se destaca em um excelente Sancho Pança instintivo e viciado em provérbios e ditos populares, verdadeira âncora para a lunática personalidade de Dom Quixote.A produção pode ser dividida em duas partes. Primeiramente por cenas que não surpreendem, porém são mais fiéis ao romance, apresentando uma sucessão de episódios hilários que até beiram alguns planos assombrosos. Já na segunda etapa, o específico fílmico avança pela Espanha contemporânea adentro, com resultados até surpreendentes, mas bastante desequilibrados. O ponto forte dessas passagens fica atribuído a uma tenebrosa impressão de uma idéia de elevar a figura de Dom Quixote a um mito, um personagem eternizado pelas suas loucuras fantasiosas.As cenas urbanas giram em torno da tradição espanhola, enfatizando as corridas e largadas de touro, procissões religiosas e rebanhos. Tudo isso é distribuído dentro do universo da produção, que até se perde em alguns instantes, uma vez que são bem observados determinados trechos, mas esses momentos são superados com as excelentes interpretações de Reiguera e Tamiroff, assim como as aparições de Welles em algumas cenas, fazendo desse filme imprescindível conjunto para elucidar o sucesso do trabalho publicado por Miguel de Cervantes.

A Psicose do cavaleiro andante, um louco que sabia a validade de seus sonhos

Uma vez eternizada por Miguel de Cervantes, o cineasta Orson Welles recria em seu filme a história de um homem que fantasia ser a real figura de um cavaleiro andante, lutando contra moinhos de ventos como se fossem verdadeiros gigantes. Tendo um ajudante chamado Sancho que, apesar de notar que seu senhorio está completamente maluco, o ajuda em sua jornada de redenção aos seus ideais, para que encontre sua felicidade nos braços da amada Dulcinéia.Esse pequeno texto até poderia servir como um breve resumo da obra de Welles. Em contrapartida, o estereótipo humano de sua criação, gira em torno de experimentos mais ousado, que abrem margem para que sejam discutidos alguns preceitos teóricos que visando à definição de seu perfil humano e psicológico.

Nota-se no filme que a personagem sofre de psicose. A psicose é um estado anormal de funcionamento psíquico. Mesmo não sabendo exatamente como são as patologias psiquiátricas, pode-se imaginar algo semelhante ao compará-las com determinadas experiências pessoais. A tristeza e a alegria assemelham-se à depressão e a mania, a dificuldade de recordar ou de aprender está relacionada à demência e ao retardo, o medo e a ansiedade perante situações corriqueiras têm relações com os transtornos fóbicos e de ansiedade. Percebe-se no filme essa relação entre alegria e a depressão e nota-se a angústia de Dom Quixote, quando ele se vê preso em um carro de boi, o que demonstra que ali ele se depara com uma profunda depressão. Pois naquele momento ele esquece o gosto pela fantasia e se vê em uma desilusão profunda, o que futuramente é alimentado por Sancho, fazendo-o retomar a fantasia.Atribuir à figura de Dom Quixote o título de psicótico até pode ter suas razões fundadas na teoria da Psicologia. É impossível apenas negar que sua patologia jamais deva dissuadir as pessoas de sua principal característica, um homem que sabia o preço dos seus sonhos. Em momento algum, o cavaleiro descrito por Cervantes ou aquele que ganhou vida no trabalho de Welles permitiu que qualquer pessoa o convencesse que não valia à pena acreditar nos sonhos que se tem. E isso por acreditar que os planos acalentados por cada ser humano, por mais contraditórios que possam parecer, às vezes levam o indivíduo a alcançar o seu legado, escrevendo a sua glória quando realmente lhe atribuem o valor devido. A loucura do cavaleiro andante serve como testemunho de que a felicidade se resume a uma doce miragem, uma magia fantasiosa, uma ilusão que as pessoas às vezes não escolhem, mas que esperam viver sempre, ou pelo menos algum dia.

Agora basta mergulhar na personagem de Cervantes e descobrir como ele conseguiu criar um ser fictício, mas que representa a síntese da insatisfação, da fé e da vontade irremovível. Descobrindo a cada linha o que há de mais belo em um ideal desfigurado que incorpora toda a poética nobre e humana dos romances de cavalaria. O começo é simples, basta virar a primeira página e seguir com o Cavaleiro da Triste Figura e seu fiel escudeiro, cavalgando ainda por muitos séculos de aventura nessa ilusória perda da razão.

34 Coveiros:

rafa flori disse...

caraca só vc mesmo para fazer um texto enorme e nadica cansativo, muito bom mesmo rafa! e o desfecho, excelente, diria até que tah perfeito viu

Lua- Eu Crio Moda disse...

eu gostei do começo a vida pod mudar ou as vezes e o individuo q pod mudar
engraçado isso ta me fazendo raciocinar
kkkk
bjos
bom fds
do quixote foi o cara queria mudar o mundo,e tendtou a sua maneira,e tm uns q nem tentam

Raul disse...

Esse filme eu até peguei com vc, muito bom... Vc foi muito feliz na ideia de misturar o livro ao filme e tralçar um paralelo contra ambos... Sempre escrevendo maravilhosamente bem meu bom...

Lara Veiga disse...

sempre tive muita curiosidade de conhecer o universo de dom quixote, mas sempre faltou oportinidade e eis que o grande rafa surge para preencher mais essa lacuna em minha vida! é incrivel o leque de opções qque vc tras nesse blog, qq assunto é facil perto de sua escrita...

Daniel Silva disse...

Esse livro é maravilhoso.

Parabéns pelo post.

Daniel Silva disse...

Esse livro é fantástico.

Parabéns pelo post.

Annie disse...

Caramba o inicio e o final contemplam bem essa maravilha de texto muito, muito bem escrito...

Linka disse...

Nunca tinha ouvido falar do filme, parece muito bom! parabéns pelo belissimo blog

Anônimo disse...

oww, demorei pra achar o lugar aonde comentar hehehe

Dom Quixote é massa ! História pra Adulto, hehehee

karine disse...

Nunca vi post maior do que esse ! HAHAHAHA

Pois e',me lembrei de quando era crianca com o senhor Dom ...pena que nao se fazem contos como esses e outros,tudo o que no maximo se produz hoje e' adaptacao.
Sera que voltaremos a ter escritores com imaginacao como no seculo passado?

xx

Nina disse...

aaah, que legal! eu acho a história de dom quixote incrivel, cheia de metaforas profundas, gosto muito =)

Tudo Portátil disse...

Depois dessa tenho que ver o filme.

Breno Alves disse...

texto bem escrito eu nunca tinha ouvido falar do filme não mais parabéns pelo blog

iMarty Turbo disse...

prefiro o livro do que o filme...

Anônimo disse...

Legal....Nunca soube de um filme do Dom Quixote
anão ser aquela animação "Donkey Xote"

Luiz Scalercio disse...

cara bellissimo texto
prbns seu blog gostei
muito.

Unknown disse...

Ótimo blog!
E ótimo senso crítico também.

Rafa Flori disse...

Achei essa manha o filme na locadora, fodastico, vc elucidou muito be as qualidades, perfeito texto rafa, escreves d+

JPFOX disse...

Sabe do que me lembrei?
Do episódio do Chapolin que conta a história de Dom Quixote!!! Muito doido!!!
Nunca vi o filme ou sequer li a obra, mas me interessei. Você sabe realmente o segredo para escrever muito sem cansar.
Inté...

Fabrício Bezerra disse...

dizem mesmo que o sancho pança é que era o louco,por acompanhar ele em tudo sabendo que era loucura

Esther disse...

eu comecei a me encantar com dom Quixote aos 6 anos quando meu avô me contava a história e mostrava as imagens do livro, como me encanta hoje!! muito mais o livro concordo!!

adorei seu texto amigo!! vc se superando!!

xeru

Régis Calheira disse...

Don Quixote é um dos meus personagens prediletos ! Parabéns pelo texto e gostei muito do blog.

Abração

iMarty Turbo disse...

gostei das fotos...

Unknown disse...

ha muito tempo atras eu me perguntava oke ele queria dizer com dragões ficava pensando... com tempo descobri que eram apenas moinhos de ventos...esse personagem eu acho que e dos melhores da literatura, quem nunca não ouvia falar de dom quixote e seus moinhos de ventos...

Lília Hendi disse...

Ahhh,esse é um dos meus livros favoritos junto a O corcuda da Notre-Dame de Victor Hugo!adoro ler :D

SinaldoLuna" disse...

parabéns pela belíssima articulação feita no texto! Parabéns mesmo!

SinaldoLuna" disse...

parabéns pela belissima articulação!
;)

Dom Quixote 0/

Karina Kate disse...

Adooooooooooooro Dom quixote!
essa história é demais, quem ainda não mandou bala nela, tem que levar pra bagagem de originais da literatura.

Antônio disse...

Olha, vou ser honesto. Eu não li todo o texto, mas pretendo voltar aqui e lê-lo por completo. Mas do pouco que li agora, pude notar que, além do bom tema envolvido, há muito talento envolvido. E, como acima num dos comentários, sua forma de escrever não é cansativa para o leitor. Abraços !!
www.antonizado.blogspot.com

Antônio disse...

Ah, que bom vc ter retornado o contatoi. Pude perceber que já estou seguindo este blog e, mesmo que não o tivesse feito, hj seria um bom pretexto para isso. Olha, seria uma boa manter contato. Estou sempre alerta para blogs de conteúdo e que, principalmente, gostem de escrever. Percebi, através da complexidade e, principalmente, pela extensão da sua postagem que você, realmente, domina a área. Estou à disposição prontamente em meu blog, e ápto a novas parcerias. Fallow !
www.antonizado.blogspot.com

Uvirgilio disse...

Nunca li Dom Quixote, mas tenho muita vontade de ler, pelo personagem em si e essa parceria entre ele e Sancho Pança.

Antônio disse...

E agora que eu pude notar que não estamos tão distantes, ao contrário do que acontece normalmente com outros blogueiros. Eu sou de Alagoas e, francamente, não estou muito acostumado a me deparar com blogs de autores nordestinos. Respondendo ao seu último recado, seria um prazer fazer parceria com um blog que está dentro de uma das minhas prpostas principais: literatura. É isso, fallow!

Inez disse...

Caramba desta vez voc~e caprichou mesmo heim! Li o livro quando eu tinha uns 20 anos, depois de ter assistido a peça. Adorei de fato tem tudo para ser considerada como a maior obra literária de todos os tempos.
Esta foi uma das melhores análises que já li sobre o livro.
Parabéns!

Millena disse...

O livro é uma lição de vida.
Vou virar top comentarista no seu blog, já é meu quinto comentário.

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