21 de abril de 2021

Debaixo dos cobertores

O artificio para fazer as palavras brotarem é sempre semelhante. Começo rememorando todos os pontos a serem explorados na narrativa e quando cada pedaço parece devidamente aglutinado, o desafio se torna deslindar um ponto de partida, por meio de palavras ser capaz de atiçar a curiosidade alheia. Alvejado por um turbilhão de ideias em forma de letras, mesmo concentrando energia para atravancar o desejo, sou impelido pelo súbito desejo de lançar a pergunta: como será que Stephen King faria?

Tudo bem, até aceito o fato de não ser o mestre do terror, mas ao lançar ao léu a despropositada indagação, ao passo de um singelo estralar de dedos, a antes claudicante trama passa a ser adornada por novas nuances, a irromper na mente como resultado de alguma bruxaria ou coisa do tipo.

Certa feita, durante um bate-papo deveras inspirador, duas perguntas acarrearam instantes de ruminação fulcral. Você praticamente venera alguns escritores, mas parece evitar a todo custo “copiar” o estilo deles. Certo? Nunca tinha analisado as coisas por esse prisma. Talvez eu me leve a sério demais para resumir minhas desventuras literárias à condição de reles simulacro, mesmo comprometendo o resultado final. No entanto, o experimento é um tanto mais complexo, acaba atrelado a uma segunda pergunta, até incessantemente respondida por outros autores mais gabaritados: por que o terror? Simplesmente por não ter outra escolha, embora não seja raro me ver enveredando por caminhos diferentes, às vezes mais líricos e melosos.

Essa falta de “escolha” acaba dissociando os textos produzidos das leituras cotidianas. Em quase letargia, agarro mais forte as cobertas enquanto a chuva espessa se choca contra a janela. Ao abrir os olhos, alguma coisa se revela, parece velar meu sono, sorrateira no breu. Se simplesmente me rendo ao temor e tento me ocultar em meio ao cobertor, os pés e tornozelos acabam desnudos, vulneráveis aos gadanhos capazes de desossá-los e gradativamente esgaçar todas as partes corpo, para seguidamente deixar reverberar um riso inclemente, retumbante.

A aparição cessa antes de berrar alto o bastante para despertar os mortos. Será que realmente se foi ou ocultou-se debaixo da cama? Não tenho coragem de olhar! O melhor a fazer é voltar a dormir e, se mais uma vez puder acordar, irei me ater a escrever. Narrar até poder ser o que me mantém vivo, mas o terror, o terror sim é a minha vida.

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IT

Foram sucessivas semanas dedicadas a desbravar as nuances de uma obra atemporal. Por longos anos preteri o desejo de encarar o maléfico Pennywise e suas mais de mil páginas. Até não haver mais como adiar esse momento, teria de enfrentar o maldito bufão a me aterrorizar desde a década de 90, quando Tim Curry, com performance emblemática, encarnou A Coisa na adaptação It – Uma Obra Prima do Medo.

It - A Coisa não desponta por acaso como um dos principais trabalhos de Stephen King. A narrativa rechaça o lugar comum, abdicando da possibilidade de meramente traçar a história de um assassino sobrenatural com cara pintada e roupas coloridas, embora essa perspectiva por si só já seja suficientemente tétrica.

O leitor é levado à fictícia Derry, em dois momentos distintos, separados por um intervalo de 27 anos, em 1958 quando Bill, Richie, Stan, Mike, Eddie, Ben e Beverly ainda eram crianças e em 1985, já adultos. Como já esperava, a trama é iniciada com o pequeno Georgie Denbrough trajando no dia tempestuoso sua imponente capa amarela, acompanhando o barquinho de papel parafinado singrando pelas águas pluviais. O irmão mais novo de Bill acabou tendo o infortúnio de ficar diante do aterrorizador Pennywise, que em grande estilo entrou em cena após imergir da escuridão, ostentando uma pletora de balões.

O assassinato da inocente criança desponta como o pano de fundo para iniciar de uma jornada épica, repleta de centelhas nostálgicas, desenvolvida ao mesmo tempo em que conjuga eventos após a morte de Georgie e na década de 80, quando a obra foi composta pelo mestre do terror. Com a alternância de períodos King consegue atribuir o caráter alinear à narrativa e sem pedir licença, remete ao leitor à condição de testemunha ocular de uma série de acontecimentos violentos, nos quais crianças e jovens desaparecem ou são trucidados por um homicida misterioso .

O conjunto de acontecimentos acarreta passagens verdadeiramente angustiantes, e esbanjando capacidade de suscitar reflexão sobre o mal por traz de Pennywise, um reflexo itinerante da natureza humana, hora capaz de ser mais pérfido e inclemente em relação à mal-ajambrada vilania. No fim das contas, It é um imenso bodoque e os elásticos presos sobre as extremidades impulsionam a munição, capaz de sobrepor à psique dos leitores para tornar praticamente inexequível o anseio de abortar a narrativa, capaz de reverberar para fora do calhamaço , e em eclosão encontra eterna morada no âmago dos leitores.

Um dia, seguramente, dedicarei outras semanas para reler a vultosa obra. Um novo encontro já está marcado e enquanto esse apoteótico momento não chega, espero até lá que o palhaço me visite algumas noites, assombrando meus piores pesadelos. Estarei esperando, vestido no temor e armado de muito, muito encanto.

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