10 de julho de 2020

O amaro preço da mentira

“Meu último anseio, sentir o doce do seu beijo, sob a anuência dos feixes da luna mais rotunda”. Beijo é um ato animalesco, talvez impulsionado por forças tão intempestivas quanto incógnitas e, pelo jeito, quanto mais se recorre aos ósculos, mais ainda se parece imergir em um campo inexplorado. Se até Jesus Cristo se viu traído por um afável toque de bochecha, por parte de Judas com a boca, não é muito difícil testificar homens (e até mulheres) recorrendo à mentira em detrimento do prêmio: meia dúzia de ardentes osculações.

Longe de querer evocar o estilo santarrão ou promover um estamento ideológico a respeito de atos dessa espécie, mas confesso sempre ter nutrido repugnância por pessoas capazes de recorrer a métodos tão banais para concretizar seus anseios. Aquela velha história, baseada na premissa: definitivamente os fins não justificam os meios, afinal, meios ruins acarretam em fins ainda piores... Até um dia me descortinar, articulando estratagemas ascorosos para ser agraciado pelo méleo beijo da menina mais bonita!

Isso aconteceu no final da década de 90, no período de meio do ano, marcado pelas festas juninas. Acompanhado por alguns amigos, subimos em um ônibus com destino a uma cidade interiorana, jovens ansiosos, prontos para desfrutar do melhor que a noite pudesse oferecer. A cidade estava vestida para a festividade, fogueiras adornavam a fachada das casas, o cheiro de milho cozido se misturava as lufadas do vento, ensandecido, tentando extirpar as bandeirinhas de São João a formarem uma tenra cobertura, capaz de manter secos os corpos dançantes diante da garoa.

À medida que a festa decorria no ritmado sonido da sanfona, em invulgar harmonia com seus íntimos triângulo, sanfona, zabumba e pandeiro, meu grupo foi dizimado em subgrupos, até me ver sozinho na festa, mexendo meu corpo de forma canhestra e tendo meia lata de Coca-Cola como a melhor companheira de dança da noite. Mal sabia, o melhor estava por vir, em forma de uma estonteante morena de negros cabelos ondulados, pernas pomposas devidamente tracejadas no jeans justo e cintado, com uma encurtada blusa quadriculada, deixando parte do abdômen a mostra, além do vestiário típico ser completado pelas botas de salto alto, apetrecho final para a galhardia.

As maçãs do rosto eram salientes de ternura. Seus negros cabelos cacheados despontavam como a moldura para um rosto perfeito, alindado por um olhar penetrante, capaz de suscitar uma airosa vertigem. Lutava para não permitir que os participantes da festa formassem uma parede, ocultando a poética visão: a garota inominada compassadamente dentando uma espiga de milho. Enquanto a fitava, tentando não me deixar notar, nossos olhares subitamente cruzaram, e assim permanecemos, até a exuberante figura desviar o rosto, seguindo até o lixo onde depositaria o sabugo do cereal.

Outra garota, possivelmente as duas estavam juntas na festa, seguiu até ela e pelo gesto, estava sugerindo partirem para outro lugar. Antes, minha nova musa mais uma vez me ofereceu um olhar, juro até ter avistado um singelo sorriso e logo desapareceram, embrenhadas na multidão. Vai logo atrás dela, deixa de ser tão tépido! Seria a decisão mais acertada, mas ao invés disso, apanhei mais uma lata de refrigerante e segui para um ponto menos povoado, contemplando a lua no compasso cadente do xote, xaxado e baião.

- Apostaria que você não é daqui e também não gosta muito de dançar! – Talvez meus olhos estivessem me pregando uma peça, quem sabe estivessem sucumbindo a minha imaginação delirante: a voz invadindo meus ouvidos era mesmo dela. Antes de festejar o presente concedido pelo cupido espírito dos sanfoneiros, pude absorver o iminente conflito. Caso admitisse ser apenas um visitante, minhas chances com a bela morena seriam ínfimas, reduzidas a zero.

- A propósito, eu me chamo Bárbara! – Após me apresentar, tocando sua mão com leveza e encostando meus lábios, molhados de Coca-Cola, em cada lado das perfumadas bochechas, pude ensaiar uma mentirosa solução.

- Sou novo na cidade! Meu pai foi transferido para a agência bancária da praça lá atrás. Ainda não conheço ninguém, além de você, claro! – Nos aproximamos um pouco mais da festa, permanecendo longe o bastante para que pudéssemos papear um pouco, compartilhar nossas agruras. Depois, arriscamos alguns passos de dança e de tão polida, em momento algum transpareceu irritação com minha desengonçada habilidade para conduzi-la. Quando a chuva nos atingiu com maior rigor, Bárbara sorveu o restante de Coca-Cola. Pelo olhar, estava certo de transparecer vontade de encarar seus lábios macios, um beijo resfolegante, marcado pela aceleração da frequência cardíaca. Por um segundo, tentou evitar, talvez me dissuadir alegando não gostar “muito de ficar”.

- Podemos namorar se você quiser! – Então a trouxe depressa pra mim, não podia mais esperar. Dessa vez, Bárbara não oferecia resistência, foram ósculos prolongados, com gosto de “”coca”, como queria ter arrancado uma daquelas bandeiras, testemunha fulcral do momento. Meus lábios, com suavidade, deslizavam pelo seu pescoço, sentindo seus cabelos sedosos emanarem um atordoante cheiro de mato verde, as suas bochechas rosadinhas, o queixo modelado com singular esmero.

Antes do fim da festa, Bárbara disse que precisava ir e pediu para encontrá-la mais tarde na praça, pouco antes da hora do almoço. – De repente, você pode conhecer seus sogros, ainda hoje. Só preciso ver como estará o clima! Tudo bem pra você?

- Claro que sim. Estarei lá, já contando as horas, minutos, segundos... – Como queria estralar os dedos e tornar verdade aquelas famigeradas mentiras. – Você podia me passar o número do seu telefone?

- Mais tarde, na praça! – E depois nossos lábios toparam pela última vez. Horas depois, minha boca experimentava o amaro saibo do remorso. Na estrada, seguindo para casa, podia imaginar Bárbara me esperando no banco da praça, enquanto já estaria repousando na minha cama, em outra cidade.

Há situações que indubitavelmente nos leva para o lado negro e é ainda pior quando temos plena consciência disso. Os cabelos dela tinham um saboroso cheiro de mato. Tantos anos depois, quando caminho por um parque, com a mata regada pela chuva, sou invadido por aquele cheiro inebriante, sendo impossível não rememorar nossos tenros momentos. Possivelmente, Bárbara já olvidou minha existência, mas eu ainda me lembro dela, dos abrasados beijos afanados e do insipiente gosto de Coca-Cola.

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4 de julho de 2020

Andando com os mortos

Os mortos podem vir nos visitar à noite, seja para assombrar ou apenas matar a saudade, um pouco! Se por um lado jamais desacreditei nessa premissa, também não podia atestar sua veracidade, isso até uma madrugada qualquer. Mais invulgar ainda, foi experimentar os sonhos oferecendo a possibilidade de interatuar com uma pessoa morta, tendo como atenuante o fato de, pelo menos naquele mero instante, haver regressado a vida. E quando essa noção resplandece durante o delírio e simplesmente não conseguimos....

... Tudo começou ao ver-me trabalhando em uma espécie de revista, participando de algo semelhante a uma reunião de pauta. A atividade parecia ter se prolongado, o céu estava bem escuro quando foi encerrada. Lembro-me de levantar, pretendia seguir para casa, até ficar diante de uma colega de trabalho, velha amiga de infância, irei chamá-la de Brenda.

- Rafinha, a reunião rendeu, em? – Foi mais ou menos o começo da conversa, transparecendo ter passado um longo período desde nosso último contato. Recordo, sem segundas intenções, ter me oferecido para acompanhá-la até em casa, nunca se sabe os perigos aos quais uma mulher se submete, caminhando sozinha pela rua.

Sem pestanejar, Brenda aceitou a oferta após perguntar se desviar um pouco meu caminho não traria qualquer prejuízo. Ledo engano, como permaneci longo tempo sentado, ansiava mesmo por caminhar alguns quilômetros, em boa companhia, degustar um dedinho de prosa. Afinal, nem sempre a vida reservava essas possibilidades.

Não consigo rememorar, com precisão, o conteúdo dos assuntos. Tudo decorria meio fragmentado, vindo à tona somente alguns lampejos da prosa, passando pelas peripécias no colégio, o período de faculdade e, claro, a expectativa com o novo emprego. Os mistérios passaram, então, a tomar contornos mais tracejados, não chegávamos ao destino ou Brenda, como se fosse possível, já não sabia mais onde morava.

Seguimos como dois errantes, rindo a vagar sem destino, até subitamente uma reminiscência sobrepujou a alegria, acalentando sobressaltos inquietantes: Brenda estava morta! Agora amentava bem o triste acontecimento, um episódio inusitado, realmente marcado por certa estranheza, bem do tipo que se leva uma vida inteira para conceber. O baque foi tão intenso a ponto de me deixar estático, assistindo a falecida vagante permanecer tagarelando, inteiramente alheia ao meu conflito.

- Brenda, eu preciso te dizer uma coisa...

- O que? Pode falar!

Brenda, amiga, você morreu, faleceu há algum tempo, cerca de um ano. Eu tenho certeza! Como pode estar aqui, ao meu lado, andejando? Ansiava por fazer esses questionamentos, no entanto, as palavras se amotinaram desobedientes. Talvez também estivesse morto. Poderia aquela ser alguma maldita realidade paralela? Estaria minha mente sintonizada em alguma existência oculta? Em alguma fenda no canto do universo remoto, Brenda e eu seríamos colegas de trabalho?

De tanto caminhar, sem explicação, acabamos chegando à entrada do condomínio onde moro. O destino não deveria ser a minha casa, embora tenha sido lá que chegamos. Brenda perguntou se podia subir, queria um pouco d’água. No elevador, tentei novamente colocá-la a par dos fatídicos acontecimentos, envolvendo sua existência interrompida, e as malditas palavras insistiam em permanecer recônditas. Na cozinha, Brenda sorveu a água com volúpia e disse que seguiria só.

- Chegamos até aqui. Faço questão de...

- Não precisa. Você foi muito generoso. Deve estar...

- Eu faço questão! Não quer sentar um pouco, caminhamos tanto!

- Eu bem que gostaria. Preciso voltar, desculpe, não tenho muito tempo!

E assim retornamos, a iminência de uma nova caminhada. Novas tentativas de transportá-la a dura realidade seriam postas em práticas, só não ideava mais o triunfo, a revelação parecia fincada sob as garras do anonimato. Já na portaria do prédio, dei por falta do meu celular.

- Brenda, acho que esqueci o meu telefone! Vamos subir, preciso...

- Desculpa, eu não tenho mais tempo.

Por um mísero segundo, dei-lhe as costas. Quando voltei para fitá-la, argumentando que levaria no máximo cinco minutos, minha amiga havia desaparecido, quem sabe regressado ao mundo dos mortos. Não me daria por vencido tão fácil, Brenda estava ali, há míseros segundos. Retornei para falar com o porteiro.

- Você viu a menina que estava aqui comigo, agora!

- Boa noite, Rafael!

Educação é importante, mas o bom homem aparentemente não captou minha agonia. – Você viu pra que direção foi a moça, que estava comigo?

- Moça?

- Sim, a que subiu e desceu comigo, bem agora!

- Rafael, você chegou e desceu sozinho. Está acontecendo alguma coisa com você?

Lembro-me ter regressado à rua e não vislumbrei qualquer pista do paradeiro dela. Antes de despertar, pensei na razão de Brenda repetir sucessivamente: eu não tenho muito tempo. Apesar das chances, por que algo ou alguma coisa me impedia de revelar sua morte? Antes de despertar, em meu íntimo, despedi-me mais uma vez de Brenda e agradeci por ter proporcionado uma última e singela lembrança!

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29 de junho de 2020

Estrada dos sonhos

A felicidade não vive nas sinuosas curvas da estrada. O asfalto é a própria felicidade, oferece a possibilidade de fitar as nuances do mundo pela metade do pára-brisa, além de vislumbrar a ultrajante risca tracejada, marcando infinitamente o centro da via. O sonho, o sonho será sempre a melhor estrada!

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Personagem das sombras

O ambiente aberto parecia irrompido por um véu negro. Seja a um metro de distância ou no máximo permitido aos olhos chegarem: era apenas consentido fitar a escuridão, não existindo sequer uma fagulha de lume para incitar a formação da penumbra. Não despontavam obstáculos para refrear o caminhar a passos largos, ou correr impelido pelo medo. Não havia nada, o manto preto talvez tivesse drenado tudo, como se no fim das contas, não tivesse saído do mesmo lugar, tudo persistia apagado. Era impossível descortinar o cenário umbrático, desarvorar o breu enigmático.

Logo, linhas disformes passaram a estampar a escuridade. Formas e traços não chegavam a atingir nitidez, mas vinham carregados pela certeza de haver, sim, algo ali. Podia ser imaginação ou mesmo alguma espécie de poluição visual, até que um riso pavoroso, emergido da figura desmedida, inundou os ouvidos. Diante das trevas, é impossível debelar a escuridão, inútil lutar para se desvencilhar dela.

O gargalhar tornava-se mais estridente à medida que se aproximava, vogando morosamente em minha direção. Pelos contornos tracejados, as carrancudas maçãs do rosto eram bem salientes, adornadas pelas órbitas carcomidas, mais escuras se comparadas com o negro véu. Era uma figura morta, exibindo um semblante um tanto pávido, pelo rosto quase por completo desprendido do crânio, emoldurado por brancas mechas de cabelos esvoaçantes.

- Seria capaz de escalar até as mais elevadas masmorras do inferno para te pegar - asseverou a bruxa, uma voz compassada, marcada pelo timbre tíbio e perturbante.

- O que você quer afinal? – Indaguei, em sobressaltos inquietantes.

- Enfim, perguntou! Me retrate em uma de suas histórias. Ou irei te assombrar, voltarei para encomendar sua alma! – De maneira paulatina, a voz foi ecoando, a luminosidade passou a transfixar o véu, refletindo diante de meus olhos o começo de um novo dia.

Sem hesitar, ative-me logo a escrever para manter distante a assombração. Dará certo, afinal? Por enquanto, sim. Talvez... Apenas por enquanto!

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7 de junho de 2020

Falsas Verdades

É possível que muitas boas histórias tenham tido supermercados como pano de fundo, e infelizmente, todas essas tramas testemunhadas por latas, invólucros, garrafas, frutas, eletrodomésticos, tenham se perdido no tempo ou encontrado morada em algum espaço obtuso, uma espécie de cemitério das histórias perdidas. E naquela não tão lépida noite de sábado, mais uma trama intriguista estava prestes a se desenrolar e, assim como outras tantas, fadadas a recamar os limbos.

Tom acabara de romper as soleiras da porta de vidro eletrônica, empurrando vagamente o carrinho metálico, já achando inconveniente o sonido proveniente da má lubrificação das rodas. Enquanto caminhava pela fileira de caixas, a caminho dos corredores onde eram ofertados os produtos, tentou a todo custo não fitar os tributos de uma bela jovem, ligeiramente curvada, trajando um modelo de saia jeans capaz de valorizar as exuberantes pernas avantajadas.

Por um momento, a mente remeteria a imagem da ex-mulher. Nos primeiros anos de namoro, saias faziam bem parte de seu vestiário, exibindo pernas muito mais bonitas. Conseguiu, felizmente, afugentar a tempo o suvenir da mente, antes que efetivamente pudesse passar a povoar seus pensamentos de maneira inconveniente. Procurou pensar como a loja estava vazia naquele dia, com meia dúzia de gatos pingados na sempre disputada seção de eletrodomésticos, além de haver alguns jovens discutindo qual marca de vodca levariam para um luau a beira da praia. Garotos imberbes, de mãos dadas com essas espevitadas garotas de cabelos pintados, brincos, piercings, shorts justos ou saias encouradas. Todos ansiosos pelo melhor da noite, um mundo de descobertas que ainda estava por vir. Ainda me lembro, eu e meus inseparáveis amigos, nessa idade, definitivamente não fazíamos nada disso.

As queixas demoraram um pouco mais a cessar em seu íntimo. Sem se deixar notar, como uma sombra assombrando o grupo infanto-juvenil, Tom apanhou duas garrafas de seu vinho favorito e após breve conflito de incerteza, retornou para pegar uma terceira garrafa. Sem perceber, todos os seus passos vinham sendo observados por um olhar atento e não era pelas dúzias de lentes vitrificadas, verbalmente reclamando por um sorriso. Tom chegou a passar próximo à mulher, astuta o bastante para se esconder atrás de um amontoado de refrigerantes em promoção, mas por sorte, pelo menos naquela noite, demonstrava predileção por vinhos, latas de cerveja e energético, seguindo agora em direção ao setor de congelados. Possivelmente, de lá iria incursionar pelos laticínios, padaria... Era tempo o bastante para permanecer no anonimato, passar no corredor de sucos e seguir para o caixa.

Menos de dois minutos depois, a mulher, antes a observar os passos de Tom, carregando na mão direita a cesta cheia de mantimentos, movia-se apressadamente até o último caixa de atendimento, bem próximo a saída. Apenas poucos metros a separava do guichê, só que antes mesmo de celebrar a vitória, o alvo da fugitiva, distraído, saiu de um corredor e por pouco não a atingiu, acidentalmente, com o carrinho.

- Sofia, você por aqui, essa hora da noite?
- Tomas, que surpresa! – Respondeu, esforçando-se ao máximo para realmente ensaiar um ar de surpresa. – Não esperava encontrar você por aqui, afinal o apartamento que alugou fica há uns cinco quilômetros daqui. Algum problema com os mercadinhos daquela região? – brincou Sofia, tentando disfarçar a respiração ofegante, afinal o ex-marido não precisava descobrir que estava fugindo dele.

- Fomos casados tempo suficiente para você me chamar de Tom. Na verdade, Sofia, eu não estava em casa. Minha namorada, a Melissa, mora aqui bem próximo. Nós combinamos passar a noite tomando um bom vinho, assistindo Netflix, com direito a pão de alho, como pode ver e se a fome bater mais forte, um macarrão a bolonhesa – respondeu Tom, utilizado seu peculiar tom de ostentação.

- Vendo todas essas coisas, logo pensei que estava com uma larica daquelas. Bem Tom, foi bom te...

- Espera, eu conheço bem esse vestido! Lembro que há anos gastei metade do meu salário com ele. Mas, até o momento em que éramos casados, lembro bem que ele não cabia mais em você. O divórcio parece ter lhe feito muito bem – Tom tratou de sutilmente – talvez nem tanto assim – devolver a provocação inicial, afinal tinha direito de ir e vir com seu belo possante, um dos poucos bens destinados a ele no pós-separação. Logo, a ex sugeriria ter ido aquele mercado apenas com esperança de reencontrá-la.

- Realmente eu perdi alguns quilos, estou me sentindo mais bonita do que nunca. Você também me parece bem, só acho que sua nova mulher poderia cozinhar pra você algo mais apropriado para um sábado à noite, porque macarrão a bolonhesa, em? Você foi melhor acostumado.

- Você estaria certa se...

- Após todo esse tempo de divórcio, jamais pensei que viveria pra ver você me dar razão.

Tom não escondia certo cinismo em seu riso. - É porque, na verdade, eu que pretendo cozinhar pra ela. Melissa é uma pessoa muito simples, adora macarrão a bolonhesa. Já você, por favor, não me leve a mal, sei que já não tenho nada mais a ver com sua vida. Mas, não precisava se pintar toda e usar um vestido lindo e tão caro como esse para, para, fazer compras.

- Não sei se deveria dizer nada, mas apenas vim comprar umas coisinhas para o almoço de amanhã. A propósito, quando você entrou, Tomas, ou melhor, Tom, percebeu aquela SUV importada, de cor laranja, estacionada ali na porta?
- Sim, vi sim!

- É o carro do meu namorado e nós estamos indo pra uma festa agora. Uma pena ter recebido um telefonema assim que chegamos, era uma reunião de negócios, os executivos são sempre muito ocupados. A ligação impossibilitou de estar aqui, comigo, agora. Adoraria apresentá-los. Talvez outro dia, não é mesmo?

- Bom Sofia, não quero atrasar você e seu namorado, vocês devem ter muitas coisas para executar. O caixa está vazio, pode seguir...

- Na verdade, lembrei que preciso pegar mais algumas coisas, você sabe como sou esquecida. É melhor não deixar a Melissa esperando, certo?

Tom hesitou no começo, mas acabou não resistindo a entregar a Sofia um abraço de despedida. Por um instante, os rostos se tocaram e cada um se viu abstraído pela vastidão do olhar do outro. Se a incerteza, somada a excitante sensação do proibido e principalmente o remorso, não tivesse sobrepujado o desejo, o supermercado e suas câmeras de segurança testemunhariam uma luta travada entre lábios deveras abrasados.

Com as sacolas na mão, Tom de cabeça baixa cruzou a SUV laranja, sem olhar para o lado por um segundo sequer. Minutos depois, foi a vez de Sofia também deixar a loja. Curiosamente, passou pelo carro importado como se não o conhecesse e, honestamente, ela realmente não parecia estar mentindo. Posicionou as compras no banco traseiro do carro popular financiado e retornou para o antigo lar do casal, repleto de lembranças, retirando o vestido e jogando água contra o rosto para remover a maquiagem.

Quase simultaneamente, Tom chegou ao seu apartamento alugado e sequer tentou imaginar uma Melissa sedenta por vinho e macarrão a bolonhesa, preferindo rememorar os tempos de casado, enquanto maratonava uma série qualquer da Netflix e sorvia algumas taças de vinho. Certo momento, os dois se renderam ao sono, sem descortinar os desejos recônditos, afinal casamentos podem chegar ao fim, mas as mentiras que rodeiam certos casais, essas sim são fadadas a perdurar por longo período, quiçá para sempre.

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11 de maio de 2020

Seios e coca-cola

Pelo corredor estreito, a bela se movia lascivamente. Nas mãos, sustentava latas de meu refrigerante predileto, acondicionadas em um balde paramentado por gelo. Descamisada, enquanto fitava o rotundo par de seios desnudos, orbitando meus ressequidos lábios, fiquei admirado ao perceber seu reflexo turvo bruxuleando a vermelhidão enlatada.

Sem mais delongas, impelido pelo êxtase da sofreguidão, não hesitei em avançar, chegando a esgar pela imersão do prazer... Juro ter sorvido cada milimétrica gota daquela deleitosa coca-cola.

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Suicídio Ocasional

“Os sonhos eram mais variados do que podia recordar, mas o desfecho, esse era sempre igual. Subitamente me via despencando do topo de um arranha céu, cada segundo cruzando com diferentes pessoas, no interior do prédio, diretas do seu andar, compenetradas no trabalho a ponto de, sequer, observar minha condição. Meu corpo se aproximava do solo com incrível celeridade. Cada milésimo de segundo testemunhava a vida sendo gradativamente drenada e quando enfim contemplaria a finitude da existência, despertava antes do choque , totalmente ileso.”

Seu nome era João de Santo Cristo. Qualquer semelhança com o personagem chave da música Faroeste Caboclo , da Legião Urbana, não era fruto do mero acaso, afinal a banda liderada por Renato Russo despontava como a favorita de sua mãe, uma eterna entusiasta da Turma da Colina e do rock nacional anos 80.

João de Santo Cristo gastava horas tentando decifrar o enigma por trás do excêntrico devaneio, todas as noites insistindo em profanar seu descanso. Talvez, a cena incessantemente reprisada, tivesse alguma relação com seu ofício de zelador. Ao contrário da ilusão projetada pelo inconsciente, não mantinha vínculo profissional com um suntuoso prédio, repleto de vidraças espelhadas, abrigando verdadeiras sumidades do ramo jurídico ou do mercado financeiro.

O Santo Cristo trabalhava em um prédio mais mirrado, um antiquado empreendimento de cinco andares, servido de residência para dezenas de famílias classe média. Esse aspecto fazia toda dubiez despertar sobressaltos inquietantes: se jamais trabalhara (quiçá sequer havia entrado) em uma edificação suspensa e ornada por caixilho com vidros, os sonhos não poderiam mesmo representar uma situação de iminente perigo. Para assepsiar as poucas vidraças sob sua responsabilidade, não precisava arriscar a pele com elevadores externos, plataformas aéreas e tampouco recorrer a técnicas verticais de rapel.

Quem sabe até, aquela queda não pudesse representar uma inanição cognitiva, uma sugestão intrinsecamente fulcral para proporcionar uma fuga, abortando a realidade fatídica. Nem sempre as pessoas conseguem se tornar aquilo que queriam ser quando crescessem e, dessa vez, o Santo Cristo não hesitaria em cumprir sua sina, livrando-se de toda sofreguidão vital.

Um disparo certeiro na cabeça ou uma corda amarrada sobre o pescoço? Conforme o desvaio sugeria, precisava saltar para alcançar a liberdade. Para, então, concretizar seu anseio, ocupou o corredor do quinto e último andar do residencial. Em frente à moldura, ouvia os gemidos das lufadas de vento ainda esvoaçando seus finos cabelos compridos. O zelador utilizou um banco para, em segurança, montar no peitoril da janela. Tudo precisava ser devidamente ensaiado, pensou, especialmente para parecer um acidente. Estava pronto para morrer, ainda assim rechaçava comentários do tipo, “a depressão o matou”, “o Santo Cristo se entregou, não foi forte o bastante”, “agora ele irá pro inferno”. Preferia mesmo suscitar a piedade coletiva e talvez seu jogo de cena pudesse ludibriar o Criador.

Com um pano posicionado na mão direita e um produto do tipo “limpa vidros” na outra, seus pés propositalmente deslizavam sobre a travessa inferior dos marcos das janelas. – Estou perdendo o equilíbrio, alguém me ajude, acho que vou cair – esgoelava, mais um teatro barato, necessário para tornar a mentira convincente.

O pesadelo agora era real. De olhos fechados, o Santo Cristo sentia a força da gravidade sorver seu corpo para baixo. Em questão de segundos, enfim, estaria livre, não havendo tanto tempo, como em seus devaneios, para serenar com a morte... uma morte que como nos pesadelos, na realidade por detalhes, não aconteceu!

Tudo por causa do famigerado vizinho do primeiro andar acima do térreo, que prevendo a possibilidade de alguém tentar ceifar a vida nos próximos dias, expurgando sua existência do mundo, mudou toda estrutura do toldo, novo o bastante para atenuar a queda. Embora a lona não tenha se esgarçado por completo, a estrutura metálica cedeu diante do peso multiplicado, fazendo o Santo Cristo rolar por alguns centímetros até seu corpo ser projetado sobre o teto de um carro antigo, estacionado em frente ao prédio.

Essa é a triste sina de João de Santo Cristo, sendo-lhe outorgada a vida que ele já não queria mais. Ao menos aqueles sonhos, reais o bastante para desencadear pensamentos suicidas ocasionais, jamais voltaram a perturbar seu repouso. Uma mentira egoica, contada diversas vezes, pode levar todos (ou quase) a rememorar o final feliz de um acidente com elementos suficientes o bastante para um desfecho trágico. Quando se trata do passado umbroso, todo mundo manipula os acontecimentos, evocando a ficção.

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9 de abril de 2020

A sombra que me persegue


Esse não é um texto literário, devendo ser concebido como um intrínseco relato acerca de uma aparição fantasmagórica. Aquele não era um espectro qualquer, parecia um tanto aturdido, como se os devaneios suscitados por sua iminente presença também o tivessem alvejado, resultando agora em um fantasma assombrado pela própria condição espectral.

Havia uma canção, serenamente previa uma verdade: “todo mundo esperava (mesmo) alguma coisa de um sábado à noite”, desde baladas com música alta, bebedeira e bastante “pegação”. Há quem recorra a opções mais privativas, como um churrasco entre amigos, uma pizza suculenta ou quem sabe a melhor pedida não possa ser um passeio com a mulher amada sob a anuência da lua.

Naquela noite, minha noiva e eu preterimos todas essas alternativas, elegendo o cinema como nossa fuga da realidade, ainda mais atrativa porque as telonas não exibiriam uma produção qualquer, como filmes no melhor estilo “água com açúcar”, regados à tragédia e beijos arfantes ou mesmo aqueles que abdicam do bom roteiro para apostar em enlevadas cenas de ação. A escolha não poderia ser outra senão um bom longa-metragem de terror, bem daqueles repletos de sangue, vingança, situações inverossímeis, conjugando o melhor possível a se esperar nas últimas horas de um sábado.

Antes de ocuparmos a sala, paramos para garantir pipoca e refrigerante, um verdadeiro assalto capaz de despertar até arrependimento pela ideia de deixar o sacrossanto lar. Quando o pavoroso filme – no melhor sentido possível - já estava lá pela metade, voltei a amaldiçoar o oneroso copo de refrigerante, além de me deixar alguns reais mais pobre, ainda despertava a correr para o banheiro antes dos créditos finais saltarem as telas.

Por sorte, o popular WC ficava anexo à sala, há menos de cinquenta metros do assento ocupado por nós. A vontade de descarregar era vertiginosa a ponto de me fazer abdicar de uma cabine sanitária, recorrendo ao urinol, bem menos reservado. Estava já quase liberto do incômodo e pude perceber que meus ouvidos vinham sendo invadidos por estranhas sucessões de palavras, todas aparentemente sem nexo algum.

As frases ilógicas eram golfadas por um jovem, posicionado na outra extremidade do banheiro, postado à frente do mictório, totalmente impassível. Parecia uma assombração rija, entorpecida por alguma substância, com apenas a boca se movendo, vertendo incongruências, como se tivesse, se tivesse... sem explicação.

- Os protozoários são os seres mais avançados da humanidade.

- As pontas de plástico, no começo e final dos cadarços de sapatos, foram criadas para atender a um propósito maquiavélico. – Nesse instante notei a existência de um terceiro elemento, disposto entre mim e o excêntrico garoto no final do cômodo sanitário. A situação tomou contornos ainda mais apavorantes, quando esse rapaz abandonou o banheiro de forma totalmente autêntica, como se não estivesse testemunhando o invulgar comportamento do estranho, magro e de negros cabelos crespos e curtos, trajando camisa polo estampada e calça jeans. Seu olhar afastado contemplava a parede, tornando impossível, para mim, observar suas feições. Teria ele as órbitas carcomidas, realçando os olhos cerrados, acarminados como um mar de larvas vulcânicas?

Ao mesmo tempo em que me recompunha, voltei a refletir sobre o terceiro elemento. Talvez, ignorasse aquela estranha figura pelo simples fato de que aos seus olhos não havia ninguém ali, além de mim, claro. Não estava diante de algo vivo, mas sim de uma aparição sobrenatural, a se tornar visível somente diante dos meus olhos. Por que eu? O que diabos queria de mim? Iria acompanhar meus passos pelo resto da vida? Vestido no meu medo e possivelmente com os cabelos esvoaçantes, deixei o banheiro sem olhar para traz e também sem lavar as mãos. Mas o fantasma permanecia lá, até o ouvi bradar delírios do quilate:

- Jesus Cristo não se sacrificou pelos seus irmãos. Queria apenas impressionar o pai da garota que amava.

- No fim, a garota que Jesus Cristo amava se casou com seu maior desafeto.

Com minha noiva novamente entre meus braços, até tentei voltar a prestar atenção na trama fílmica, mas o verdadeiro horror a embalar minha agonia esteve dentro daquele fétido sanitário. Não demorei a rememorar a história de um adolescente, com características físicas parecidas com a dele. Reza a lenda que tinha ceifado a própria vida no banheiro daquele cinema, só não lembrava ao certo se foi através da ingestão de veneno ou teria posicionado a arma e apertado o gatilho contra a cabeça.
Os créditos subiam, indicando o final do filme. Talvez a produção pudesse ter configurado uma experiência deveras satisfatória, mas não pude acompanhar o suficiente para opinar. Felizmente, era chegada a hora de retornar ao lar e ficar bem longe do cinema pelos próximos sábados. No entanto, por infortúnio do destino, o dispendioso refrigerante protagonizava mais uma forçosa visita ao assombrado e mal cheiroso toalete masculino.

A súbita vontade fisiológica talvez fosse o oportuno momento para comprovar que a estranha aparição teria sido apenas coincidência ou um espasmo fantasmagórico. Aquela altura estaria se atendo a assombrar outra freguesia, andarilhar novas moradas, bem longe de mim, daquele cinema e também do shopping.

Foi exatamente o que constatei ao entrar no banheiro. Por via das dúvidas, voltei a ignorar as cabines sanitárias, recorrendo pela segunda vez a um dos muitos mictórios instalados. O alívio não durou muito, sendo surpreendido novamente pela insólita alma errante, surgindo de uma das cabines que antes parecia vazia.

- Todos os segredos devem permanecer sempre escondidos.

- Filmes de terror fazem parte de um experimento verdadeiramente sinistro – tagarelou, passando por trás de mim, aparentemente flutuando em direção à porta. Não demorei também para sair em disparada, sendo interceptado por minha noiva, que estava me aguardando próximo à entrada do banheiro.

- Algum problema, Armando? Até parece que viu um fantasma? - Indagou percebendo algo estranho no ar, afinal era evidente estar um tanto pasmado.
- Mariane, por acaso você avistou um rapaz esquisito, bem magrinho, saindo por essa entrada do banheiro, há no máximo uns dois minutos?
- Não vi ninguém sair daqui, além de você, claro. Por quê?

- Vamos cair logo fora daqui. – Aquela deveria ter sido minha resposta, mas diante do epicentro da tormenta, percebendo que estava mesmo ante uma aparição sobrenatural, apenas me ative a caminhar até a saída do shopping, cruzando o empreendimento deserto, a iluminação rarefeita, talvez espraiado por verdadeira horda de seres das sombras.

Do lado de fora, na fachada do shopping, uma chuvarada incessante atingia a região, postergando a ânsia de me deslocar até o carro, para assim dar logo o fora daquele lugar. Talvez precisasse tentar evocar o lado bom da coisa, possuía uma bela história para narrar aos amigos. Quem sabe reuniria nos próximos dias um grupo de desocupados para caçar a tal assombração, devolvendo as trevas aquele expurgo... Enquanto a chuva insistia em não cessar, narrei os fatos a minha noiva, deixando-a um tanto atônita com os acontecimentos. Antes de poder tecer qualquer opinião, assistimos a porta magnética novamente se abrir e de lá emergiu aquela assombração de camisa polo e calça jeans. A entrada triunfal me pasmou menos do que o semblante natural, ausente do antes ideado, olhos vulcânicos e órbita minada, apenas caminhando compassadamente até um táxi parado na porta do shopping. (Jesus Cristo não se sacrificou pelos seus irmãos, apenas queria impressionar o pai da garota que amava.)

- Mariane, diga pra mim: por acaso está vendo aquele cara ali, entrando no carro...

- Claro que sim, por que não estaria! – A resposta colocou ponto final ao mistério. Aquele jovem poderia ser muitas coisas, mas não estava diante de uma assombração e se não fosse aquela noite tempestuosa, essa dúvida permearia por muito tempo, quiçá para sempre. ( Filmes de terror fazem parte de um experimento sinistro.)

No fim, esse poderá continuar não sendo um texto literário e tampouco será concebido como um intrínseco relato acerca de uma aparição fantasmagórica.

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Noite de Halloween


É noite de Halloween.
Somos os olhos da escuridão.
Seres das sombras vagueiam,
asas de morcegos adornam
os jazigos no chão.
Onde repousam inertes,
fantasmas da solidão.

Céu estrelado com teias de aranha
A luz da lua, ofuscada pelas lanternas de abóboras,
que iluminam o caminho por onde passam,
Os funestos seres das trevas.
Esqueletos saltam dos túmulos,
assistem a dança das almas errantes,
em homenagem ao dia das bruxas.

Escondida na floresta, a casa assombrada,
misteriosa, prepara uma festa em honra aos mortos.
Apenas nesse dia, eles podem se misturar com os vivos e...
Quem sabe nunca mais voltar.

Só depois que a lua adormece
o encanto acaba e
o sol novamente acontece.

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