9 de abril de 2020

A sombra que me persegue


Esse não é um texto literário, devendo ser concebido como um intrínseco relato acerca de uma aparição fantasmagórica. Aquele não era um espectro qualquer, parecia um tanto aturdido, como se os devaneios suscitados por sua iminente presença também o tivessem alvejado, resultando agora em um fantasma assombrado pela própria condição espectral.

Havia uma canção, serenamente previa uma verdade: “todo mundo esperava (mesmo) alguma coisa de um sábado à noite”, desde baladas com música alta, bebedeira e bastante “pegação”. Há quem recorra a opções mais privativas, como um churrasco entre amigos, uma pizza suculenta ou quem sabe a melhor pedida não possa ser um passeio com a mulher amada sob a anuência da lua.

Naquela noite, minha noiva e eu preterimos todas essas alternativas, elegendo o cinema como nossa fuga da realidade, ainda mais atrativa porque as telonas não exibiriam uma produção qualquer, como filmes no melhor estilo “água com açúcar”, regados à tragédia e beijos arfantes ou mesmo aqueles que abdicam do bom roteiro para apostar em enlevadas cenas de ação. A escolha não poderia ser outra senão um bom longa-metragem de terror, bem daqueles repletos de sangue, vingança, situações inverossímeis, conjugando o melhor possível a se esperar nas últimas horas de um sábado.

Antes de ocuparmos a sala, paramos para garantir pipoca e refrigerante, um verdadeiro assalto capaz de despertar até arrependimento pela ideia de deixar o sacrossanto lar. Quando o pavoroso filme – no melhor sentido possível - já estava lá pela metade, voltei a amaldiçoar o oneroso copo de refrigerante, além de me deixar alguns reais mais pobre, ainda despertava a correr para o banheiro antes dos créditos finais saltarem as telas.

Por sorte, o popular WC ficava anexo à sala, há menos de cinquenta metros do assento ocupado por nós. A vontade de descarregar era vertiginosa a ponto de me fazer abdicar de uma cabine sanitária, recorrendo ao urinol, bem menos reservado. Estava já quase liberto do incômodo e pude perceber que meus ouvidos vinham sendo invadidos por estranhas sucessões de palavras, todas aparentemente sem nexo algum.

As frases ilógicas eram golfadas por um jovem, posicionado na outra extremidade do banheiro, postado à frente do mictório, totalmente impassível. Parecia uma assombração rija, entorpecida por alguma substância, com apenas a boca se movendo, vertendo incongruências, como se tivesse, se tivesse... sem explicação.

- Os protozoários são os seres mais avançados da humanidade.

- As pontas de plástico, no começo e final dos cadarços de sapatos, foram criadas para atender a um propósito maquiavélico. – Nesse instante notei a existência de um terceiro elemento, disposto entre mim e o excêntrico garoto no final do cômodo sanitário. A situação tomou contornos ainda mais apavorantes, quando esse rapaz abandonou o banheiro de forma totalmente autêntica, como se não estivesse testemunhando o invulgar comportamento do estranho, magro e de negros cabelos crespos e curtos, trajando camisa polo estampada e calça jeans. Seu olhar afastado contemplava a parede, tornando impossível, para mim, observar suas feições. Teria ele as órbitas carcomidas, realçando os olhos cerrados, acarminados como um mar de larvas vulcânicas?

Ao mesmo tempo em que me recompunha, voltei a refletir sobre o terceiro elemento. Talvez, ignorasse aquela estranha figura pelo simples fato de que aos seus olhos não havia ninguém ali, além de mim, claro. Não estava diante de algo vivo, mas sim de uma aparição sobrenatural, a se tornar visível somente diante dos meus olhos. Por que eu? O que diabos queria de mim? Iria acompanhar meus passos pelo resto da vida? Vestido no meu medo e possivelmente com os cabelos esvoaçantes, deixei o banheiro sem olhar para traz e também sem lavar as mãos. Mas o fantasma permanecia lá, até o ouvi bradar delírios do quilate:

- Jesus Cristo não se sacrificou pelos seus irmãos. Queria apenas impressionar o pai da garota que amava.

- No fim, a garota que Jesus Cristo amava se casou com seu maior desafeto.

Com minha noiva novamente entre meus braços, até tentei voltar a prestar atenção na trama fílmica, mas o verdadeiro horror a embalar minha agonia esteve dentro daquele fétido sanitário. Não demorei a rememorar a história de um adolescente, com características físicas parecidas com a dele. Reza a lenda que tinha ceifado a própria vida no banheiro daquele cinema, só não lembrava ao certo se foi através da ingestão de veneno ou teria posicionado a arma e apertado o gatilho contra a cabeça.
Os créditos subiam, indicando o final do filme. Talvez a produção pudesse ter configurado uma experiência deveras satisfatória, mas não pude acompanhar o suficiente para opinar. Felizmente, era chegada a hora de retornar ao lar e ficar bem longe do cinema pelos próximos sábados. No entanto, por infortúnio do destino, o dispendioso refrigerante protagonizava mais uma forçosa visita ao assombrado e mal cheiroso toalete masculino.

A súbita vontade fisiológica talvez fosse o oportuno momento para comprovar que a estranha aparição teria sido apenas coincidência ou um espasmo fantasmagórico. Aquela altura estaria se atendo a assombrar outra freguesia, andarilhar novas moradas, bem longe de mim, daquele cinema e também do shopping.

Foi exatamente o que constatei ao entrar no banheiro. Por via das dúvidas, voltei a ignorar as cabines sanitárias, recorrendo pela segunda vez a um dos muitos mictórios instalados. O alívio não durou muito, sendo surpreendido novamente pela insólita alma errante, surgindo de uma das cabines que antes parecia vazia.

- Todos os segredos devem permanecer sempre escondidos.

- Filmes de terror fazem parte de um experimento verdadeiramente sinistro – tagarelou, passando por trás de mim, aparentemente flutuando em direção à porta. Não demorei também para sair em disparada, sendo interceptado por minha noiva, que estava me aguardando próximo à entrada do banheiro.

- Algum problema, Armando? Até parece que viu um fantasma? - Indagou percebendo algo estranho no ar, afinal era evidente estar um tanto pasmado.
- Mariane, por acaso você avistou um rapaz esquisito, bem magrinho, saindo por essa entrada do banheiro, há no máximo uns dois minutos?
- Não vi ninguém sair daqui, além de você, claro. Por quê?

- Vamos cair logo fora daqui. – Aquela deveria ter sido minha resposta, mas diante do epicentro da tormenta, percebendo que estava mesmo ante uma aparição sobrenatural, apenas me ative a caminhar até a saída do shopping, cruzando o empreendimento deserto, a iluminação rarefeita, talvez espraiado por verdadeira horda de seres das sombras.

Do lado de fora, na fachada do shopping, uma chuvarada incessante atingia a região, postergando a ânsia de me deslocar até o carro, para assim dar logo o fora daquele lugar. Talvez precisasse tentar evocar o lado bom da coisa, possuía uma bela história para narrar aos amigos. Quem sabe reuniria nos próximos dias um grupo de desocupados para caçar a tal assombração, devolvendo as trevas aquele expurgo... Enquanto a chuva insistia em não cessar, narrei os fatos a minha noiva, deixando-a um tanto atônita com os acontecimentos. Antes de poder tecer qualquer opinião, assistimos a porta magnética novamente se abrir e de lá emergiu aquela assombração de camisa polo e calça jeans. A entrada triunfal me pasmou menos do que o semblante natural, ausente do antes ideado, olhos vulcânicos e órbita minada, apenas caminhando compassadamente até um táxi parado na porta do shopping. (Jesus Cristo não se sacrificou pelos seus irmãos, apenas queria impressionar o pai da garota que amava.)

- Mariane, diga pra mim: por acaso está vendo aquele cara ali, entrando no carro...

- Claro que sim, por que não estaria! – A resposta colocou ponto final ao mistério. Aquele jovem poderia ser muitas coisas, mas não estava diante de uma assombração e se não fosse aquela noite tempestuosa, essa dúvida permearia por muito tempo, quiçá para sempre. ( Filmes de terror fazem parte de um experimento sinistro.)

No fim, esse poderá continuar não sendo um texto literário e tampouco será concebido como um intrínseco relato acerca de uma aparição fantasmagórica.

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Noite de Halloween


É noite de Halloween.
Somos os olhos da escuridão.
Seres das sombras vagueiam,
asas de morcegos adornam
os jazigos no chão.
Onde repousam inertes,
fantasmas da solidão.

Céu estrelado com teias de aranha
A luz da lua, ofuscada pelas lanternas de abóboras,
que iluminam o caminho por onde passam,
Os funestos seres das trevas.
Esqueletos saltam dos túmulos,
assistem a dança das almas errantes,
em homenagem ao dia das bruxas.

Escondida na floresta, a casa assombrada,
misteriosa, prepara uma festa em honra aos mortos.
Apenas nesse dia, eles podem se misturar com os vivos e...
Quem sabe nunca mais voltar.

Só depois que a lua adormece
o encanto acaba e
o sol novamente acontece.

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