28 de março de 2019

Quem “bate” também pode não esquecer jamais

“Quem bate, esquece; quem apanha, não”. Todos, em algum momento, devem ter cruzado com essa expressão e se fruído com os chamados ditos populares, que se carregados de senso comum, esbanjam poder de retratação. Como nessa perspectiva, baseada na assertiva de as pessoas serem capazes de relevar, por exemplo, aquilo o que se diz, mas geralmente nunca a dor causada de maneira concreta.
Sem qualquer intenção de, digamos, abjurar os chamados ditos populares, acabei contrariando a regra, afinal: às vezes quem “bate” acaba se vendo mais fincado às consequências de seu lastimável ato, em comparação ao alvo da ação impetuosa. Furtiva, a trama não foi presenciada por mais de três ou quatro pessoas e mesmo não desvelando qualquer aspecto onírico, representa uma das maiores compunções que carrego na vida. Os acontecimentos se sucederam no começo da década de 90, não tinha mais que 12 anos. Quando se é apenas uma criança, as opções de entretenimento, distantes de variadas, mostravam-se realmente restritas, indubitavelmente terminando num passeio despretensioso, seguido por uma apetitosa fatia de pizza, no shopping center da cidade. Essas incursões ainda tinham um atrativo que embalava a gurizada daquela época, o game Street Fighter, pois entre tantos “Hadokens” e “Shoryukens”, a rivalidade acabava aflorando, saltando das telas e, com isso, os fliperamas quase se tornavam verdadeiros campos de batalha.
Certa feita, estava com um amigo, apenas vislumbrando uma acirrada disputa entre dois desconhecidos. Os jogadores eram muito hábeis, a ponto de meu colega e eu não ousarmos desperdiçar nossas poucas “fichas” para embarcar no desafio, a derrota era iminente, precisando mais do que um milagre para garantir um triunfo derradeiro. Como também era possível se divertir observando os outros brincarem, lá estávamos transmitindo empolgação, e próximo da máquina, os eventos ainda eram testemunhados por um quinto elemento, que só percebi a presença ao acaso, ao fazer algum comentário que hoje sequer recordo qual, sendo assim impossível a reprodução.
Certo é que o tal quinto elemento, um garoto de cabelos loiros e lisos, aparentemente um pouco mais novo, apesar de não me conhecer, respondeu minha colocação em tom de deboche, seguido de uma risadinha dotada de peculiar cinismo. Apesar de ter refutado meu argumento com insolente ironia, arrancando risadas até do meu amigo, ao invés de ficar quieto e seguir a vida, num misto de egocentrismo e inocência, tentei justificar. O quinto elemento era realmente uma figura marrenta, aproximou-se e não hesitou em farpear mais. Ridicularizado, resolvi contar até dez para não voar no pescoço do galeguinho folgado, mas quando estava no número seis, acabei desferindo um tapa seco no rosto do garoto, que antes de mudar suas feições, reprovando a agressão sofrida, permaneceu postado em minha frente, atônito. Qualquer vestígio de risada havia cessado, os jogadores mantiveram-se em aparente concentração, talvez não tivessem percebido a animosidade, mas lembro da voz surpresa do meu amigo:
- Rafael pow, que é isso cara! Você bateu no guri, ele só estava brincando – Foram exatamente essas palavras, não tão duras, mas suficientes para sobrepujar a ira e cavar um túnel para nortear as ações. Inteiramente desarmado, apenas desviei o olhar enquanto o quinto elemento, trajado a vergonha ou sentimento similar à desonra, não hesitou em se recolher, estratagema semelhante ao qual deveria ter adotado antes de abdicar a razão diante da tênue adversidade. Temi que, em questão de minutos, surgisse um irmão mais velho, grande e forte, impelido pelo desejo de vingança, querendo lavar com mais violência a honra do irmão, realmente sovado por razão fugaz.
Certo é que ninguém apareceu e a desventura consagrou mais um passeio que, literalmente, terminou em pizza, dessa vez sem o deleite propiciado pela saborosa calabresa coberta por catupiry e queijo mussarela derretido. Passaram-se tantos anos, aquele olhar triste e desolador ainda me assombra. Era apenas uma criança, madura o suficiente para saber: o garoto realmente não merecia. Nunca esquecerei aquela tarde, tendo a disputa de Street Fighter como pano de fundo, com o golpe arrebatador desferido fora da tela. E tal ação... ainda fulge.

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